Em Portugal, durante todo o século XX, existiu sempre a tentação de uma ideologia política anular a outra.
Durante o Salazarismo a esquerda foi completamente ostracizada, eu não vivi tempo suficiente durante o antigo regime, para sentir qualquer tipo de malefício deste sobre mim.
Lembro-me do dia 25 de Abril e das imagens veiculadas pela TV a preto e branco e da alegria espalhada nos rostos.
Mas do interior vinha um eco de: parece que em Lisboa aconteceu qualquer coisa.
Viver num regime onde não se pode manifestar discordância política é extraordinariamente desagradável tanto em termos intelectuais como em termos físicos.
Contudo, depois da revolução dos cravos, o PCP pretendeu implementar um regime determinado e resquícios dessa tentativa foram demasiado dolorosas, para mim, e para todos os que não se sentiam minimamente atraídos por aquele tipo de regime.
É claro que nós sabemos que a base teórica do comunismo era ligeiramente diferente e que o sistema político fascista do “alguns serem mais iguais do que outros” pretendia ser substituído pelo revolucionário “alguns seriam, inevitavelmente, mais iguais que outros” ah e sabemos, também, que os protagonistas vestiriam de maneira ligeiramente diferente.
Não gosto do que simboliza o Salazarismo. O Salazarismo é a apologia da ideia comum que ainda hoje prevalece na igreja portuguesa: as famílias bem têm mais direitos que a ralé, a ralé tem apenas deveres e uma grande dívida para com a sociedade. Acontece que esta ideia, ligeiramente democrática, para meia dúzia, foi substituída durante largos anos por uma outra, extraordinariamente inovadora, quem é de esquerda é intelectualmente superior e inovador e irreverente e todos os outros são fascistas e gentalha desprezível. E, no meio disto tudo, o povo?
Bem o povo... vocês sabem... precisa de ser educado!
O problema da esquerda é que levou alguns anos a perceber que o povo não quer ser educado da mesma maneira; que sistemas de igualdade, ao nível profissional, por exemplo, geram profissionais irresponsáveis, arrogantes e corporativistas; e que nenhuma ideologia consegue transformar intimamente o homem.
O Portugal que deu votos a Salazar revela alguns ressentimentos:
- a direita que dificilmente se revê em Salazar mas que vota massivamente no ditador para se vingar do ostracismo a que Cunhal a votou;
- revela o povinho: o povinho não gosta de Cunhal, a igreja ensinou-o que os comunistas comem criancinhas e o povinho quando quer aprende; mas este povinho iletrado, analfabeto e alienado por meios da comunicação social como a TVI, por exemplo, foi, muito ironicamente, também “deseducado” pelos diversos sistemas de ensino que a esquerda foi “experimentando” ao longo de diversos anos. E o povinho também aprendeu pela escola da esquerda, pois quando quer aprende, que é melhor sermos funcionários públicos e fazermos de conta que produzimos.
- revela a esquerda extra-PCP de mal com o PCP, com Sócrates e ainda não refeita da orfandade de Mário Soares (foi essa esquerda de cabeça perdida que convenceu o velho leão a encarnar o seu papel preferido o de salvador da pátria).
E este é o Portugal do presente:
Universidades privadas que são um autêntico ninho de sabe-se lá o quê; de associações universitárias que são o ninho dos futuros políticos e autarcas do nosso país: licenciados em coisa nenhuma; de povinho deseducado por um sistema de ensino que se preocupa acima de tudo com o politicamente correcto: o insucesso escolar e tudo isto sem o mínimo de visão, com palavras ocas e para jornal mostrar; por empresários mal formados para o mundo dos negócios; por médicos irresponsáveis e sugadores do sistema de saúde; por um sistema de justiça corporativista, injusto e irresponsável, etc, etc, etc.
E os portugueses do presente não aguentam o seu Portugal porque:
- ainda não perceberam que é tempo de curarmos as feridas,
- ocuparmos os nossos lugares na sociedade,
- expulsarmos a má moeda
- e seguirmos em frente, unindo esforços e prosseguindo num objectivo comum: Portugal, um país de futuro.
Mas tudo isto, caríssimo leitor, é utopia pura e dura, pois nós sabemos que é muito mais interessante assistir à partida da bancada e chamar nomes ao árbitro, aos jogadores, ao treinador e curarmos as feridas com a verborreia dos "opinion maker" tão visionários e tão participativos no nosso passatempo preferido: enlamear a pátria, fazendo de conta que ela não lhe pertence e continuar despreocupado quanto ao seu empenhamento profissional, ao seu conhecimento, à sua motivação, à sua mais-valia enquanto ser humano.
Afinal o tempo muda-nos
mas
não deveríamos perder a crença
na nossa força
e na nossa luminosidade...