sexta-feira, março 23, 2007

Filhos do cê dê ésse [Parte 1]

Fui um daqueles afortunados que teve a oportunidade única de poder aprender a ler as primeiras palavras nas instrutivas paredes de uma Lisboa pós-revolucionária. Ainda me lembro [como se fosse hoje] da imensa satisfação que senti quando consegui ler a primeira frase completa. Nesse inolvidável dia, ia a sair da escola pela mão da minha progenitora, e consegui ler em voz alta a seguinte inscrição pintada numa parede exterior da Basílica da Estrela: “O Povo libertou Arnaldo Matos e libertará todos os antifascistas presos”. Recordo que o meu pai pareceu algo surpreendido, mas a minha mãe ficou tão feliz que nos dias que se seguiram sempre que me iam buscar à escola, à saída, virava-me para a Basílica e não me cansava de repetir aquela ladainha. Alguns dias mais tarde, ao sair da escola, ia naquela parte do “ e libertará”, quando senti uma valente carolada. Compreendi de imediato que o meu progenitor considerava que já estava na hora de eu começar a aprender a ler outro tipo de preposições.

Dizem as más-línguas que naquela época não se aprendia nada nas escolas. Maior falsidade não pode existir. Posso garantir que quando saí da escola primária [para além do Avante] já sabia de cor todas as letras e músicas do Zeca, Ermelinda, Adriano, Sérgio, Branco, e companhia limitada. E sou uma testemunha viva que o sistema de ensino era tão exigente e revolucionário, que também aprendíamos precocemente a entoar todos os pregões revolucionários; a traduzir todas as siglas das inumeráveis forças políticas, sociais, sindicais, militares e paramilitares; e a associar a complexa iconologia existente na época às respectivas [des]organizações.

E estão redondamente enganados todos aqueles que ainda pensam que a exigência educacional que incorria sobre as crianças pós-revolucionárias se cingia exclusivamente a áreas como a literatura, música ou a pintura. Também nos foi facultada uma formação de excelência na área das ciências exactas. Por exemplo, éramos compelidos a dominar a ciência matemática precocemente, pois tudo o que se passava à nossa volta era decidido após uma breve votação de braço no ar. E mais! Com a inflação galopante que se fazia sentir, se queríamos continuar a lanchar todos os dias as deliciosas bolas de berlim com creme, quentinhas, que se vendiam na cantina da escola, acompanhadas de um refrescante e super-nutritivo Pirolito, tínhamos de conhecer bem os processos inflacionários para poder negociar com os nossos pais todos os tostões das nossas semanadas.

[continua…]

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5 Comments:

Blogger cristina said...

Ainda não percebi a relação com o título - devia?... -, mas estou a gostar... Já tinha saudades das tuas crónicas!

sexta-feira, março 23, 2007 9:15:00 da manhã  
Blogger Carlota said...

Como não podia deixar de ser, larguei a minha franca gargalhada nas últimas quatro linhas do primeiro parágrafo. :)
Bem podes agradecer ao teu pai essa carolada, hein?
Beijola.

sexta-feira, março 23, 2007 1:04:00 da tarde  
Blogger André Carvalho said...

Cristina,

Espera pela segunda parte que vais perceber a relação. :)

Carlota,

Provavelmente foi a minha salvação. ;)

Bjs

sexta-feira, março 23, 2007 8:35:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ainda és do tempo dos pirolitos? :)
Isso já não existia nos meus tempos de escola primária. Mas tinha direito a um copo de leite todas as tardes à borla! ;)

sexta-feira, março 23, 2007 8:54:00 da tarde  
Blogger Carlos Malmoro said...

O «Pirolito» deveria ser nomeado como a oitava maravilha portuguesa.

sábado, março 24, 2007 2:24:00 da tarde  

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