sábado, janeiro 13, 2007

como baralhar as coisas...

Espalhem a notícia
do mistério da delícia
desse ventre
espalhem a notícia do que é quente
e se parece
com o que é firme e com o que é vago
esse ventre que eu afago
que eu bebia de um só trago
se pudesse

Divulguem o encanto
do ventre de que canto
que hoje toco
a pele onde à tardinha desemboco
tão cansado
esse ventre vagabundo
que foi rente e foi fecundo
que eu bebia até ao fundo
saciado

Eu fui ao fim do mundo
eu vou ao fundo de mim
vou ao fundo do mar
no corpo de uma mulher
[bonita]

A terra tremeu ontem
não mais do que anteontem
pressenti-o
o ventre de que falo como um rio
transbordou
e o tremor que anunciava
era fogo e era lava
era a terra que abalava
no que sou

Depois de entre os escombros
ergueram-se dois ombros
num murmúrio
e o sol como é costume foi um augúrio
de bonança
sãos e salvos felizmente
e como o riso vem ao ventre
assim veio de repente
uma criança

Falei-vos desse ventre
quem quiser que acrescente
da sua lavra
que a bom entendedor meia palavra
basta e só
adivinhar o que há mais
os segredos dos locais
que no fundo são iguais
em todos nós

Sérgio Godinho, "Espalhem a notícia" (1981)


Vá-se lá saber porquê, mas, nos últimos tempos, tenho-me lembrado muito desta canção. Canta, sem dúvida, a beleza do nascimento de uma criança e o quase misticismo de uma mulher grávida. Digo «sem dúvida» pois não me parece que, quando desejada e sem complicações, alguém ponha em causa tudo isto... Quando desejada!... O "Não" tem, por vezes, uma postura universal de enaltecimento de toda esta beleza e misticismo, apelando, irracionalmente, a um sentimento emotivo, que todos partilhamos - quando tudo corre bem!... Isto é um modo de baralhar as coisas... O "Sim" não nos impede de continuar a admirar embevecidos toda esta mística, e, em último caso, luta até para que não se degrade...
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