quinta-feira, março 29, 2007

Filhos do cê dê ésse [Parte 2]

Com o ambiente que se vivia em Lisboa naquele período pós-revolucionário, ainda hoje tenho alguma dificuldade em encontrar uma explicação verosímil para o facto de não ter sido arrastado pela avalanche trotskista-maóista-marxista-estalinista-leninista que varria o país de lés-a-lés. Como já meditei bastante sobre o assunto, a melhor explicação que encontrei para a minha miraculosa bem-aventurança baseia-se naquela soberba aptidão que as crianças têm para reconhecer um aldrabão à distância. Deverá ter sido graças a esta prodigiosa capacidade infantil que nunca fui enrolado pelas falinhas mansas do camarada Mário Soares, assim como também nunca caí naquela estória de que o Álvaro Cunhal tinha vindo da ú érre ésse ésse.

Já nesse tempo não era preciso ser-se muito inteligente para se depreender através da fisionomia do secretário-geral do pê cê pê que ele só podia ter vindo directamente da Roménia, mais precisamente, da Transilvânia, e era, com toda a certeza, um parente bastante próximo do Conde Drácula. Mas o pior aconteceu quanto contei esta descoberta ao meu colega de carteira que nunca perdia os desenhos animados checos do Vasco Granja. Chamou-me logo de fascista. Depois de lhe ter partido uma régua na cabeça, não perdeu tempo a denunciar-me à camarada professora.

Sabendo de antemão que a camarada professora era comunista, temi seriamente pela minha segurança, e já imaginava o COPCON a entrar por ali dentro e a levarem-me para ser interrogado pelo camarada Otelo. Só descansei depois da camarada professora me ter chamado e procurado convencer que se os comunistas fossem de facto vampiros, nunca defenderiam um sol a brilhar para todos nós.

Para não complicar ainda mais as coisas fiz um ar bastante arrependido, igual àquele que via os pides fazer na televisão, mesmo tendo a consciência que aquilo do “sol brilhará para todos nós” não passava de mais um inteligente estratagema dos comunistas para esconder o facto de andarem mesmo a sugar o sangue das criancinhas. Felizmente que não tinha contado toda a verdade ao meu colega delator, caso contrário teria sido o meu fim. Pois nem sequer a camarada professora conseguiria arranjar uma boa desculpa para o facto do camarada Álvaro Cunhal, tal e qual um bom vampiro, dormir sempre em local incerto, e desconhecido do mais comum dos mortais.

Apesar de até àquele dia sempre que alguém me perguntava o meu partido eu nem sequer hesitar – levantava o braço esquerdo e de punho cerrado gritava, “éme érre pê pê” –, a verdade é que foi a partir daí que me apercebi que morava dentro de mim um ainda desconhecido gene direitista que, para meu próprio bem, teria de aprender a dominar.

[continua…]

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3 Comments:

Blogger cristina said...

Just to know, I'm listening...

sexta-feira, março 30, 2007 8:26:00 da manhã  
Blogger NancyB said...

Não imaginas o qto eu acho importante falarmos sobre tudo isto.

sexta-feira, março 30, 2007 9:28:00 da tarde  
Blogger james stuart said...

Gostaria de efectuar um correcção ao seu texto, uma pequena imprecisão que é absolutamente plausível dadas as circunstâncias geográficas específicas. A haver proximidade familiar entre o indivíduo referido e o conde Drácula, que é possível em teoria, temos a ter em conta que o segundo era realmente um conde (não vampiro, que isso é mito) mas senhor de um condado pertencente à Hungria. A transilvânia apenas passou a ser província Romena a partir do "Trianon" ou seja a Hungria perdeu para a Roménia a Transilvânia como consequência do castigo aplicado ao império Austro-húngaro pela sua implicação beligerante na 1ª Guerra Mundial (Assim foi o ponto de vista dos que ganharam a guerra, se é que em guerras há disso). Uma "compensação de guerra" por assim dizer (mas o assunto já vinha de séculos antes, revoltas étnicas, etc).

sexta-feira, abril 06, 2007 7:13:00 da tarde  

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