quinta-feira, março 20, 2008

Filhos do cê dê ésse - Parte 2 [Reloaded]

Com o ambiente que se vivia em Lisboa naquele período pós-revolucionário, ainda hoje tenho alguma dificuldade em encontrar uma explicação plausível para o facto de não ter sido arrastado pela avalanche trotskista-maóista-marxista-estalinista-leninista que parecia varrer o país de lés-a-lés. Como já meditei bastante sobre o assunto, a melhor explicação que encontrei para a minha miraculosa bem-aventurança talvez se deva àquela soberba aptidão que as crianças têm para reconhecer os aldrabões à distância. Deverá ter sido graças a esta prodigiosa capacidade infantil que nunca fui enrolado pelas falinhas mansas do camarada Mário Soares, assim como também nunca caí naquela estória de que o Álvaro Cunhal tinha vindo da ú érre ésse ésse. Já nesse tempo não era preciso ser-se muito inteligente para se depreender através da fisionomia do secretário-geral do pê cê pê que ele só podia ter vindo directamente da Roménia, mais precisamente, da Transilvânia, e era, com toda a certeza, um parente bastante próximo do Conde Vlad Drácula.

Quanto contei ao meu coleguinha de carteira esta minha desconfiança, acusou-me logo de fascista. Apercebi-me de imediato que o meu coleguinha andava a ver muitos desenhos animados checos do Vasco Granja; e, numa reacção perfeitamente normal [à época], parti-lhe uma régua na cabeça – num tempo em que as réguas ainda eram todas em madeira. O camaradinha não perdeu tempo e denunciou-me à Secretária-geral lá do sítio, a prófe vermelha. Sabendo de antemão que a camarada prófe era um puro sangue marxista, temi seriamente pela minha segurança, pois comecei logo a imaginar o COPCON a entrar por ali adentro, e a levarem-me num Chaimite para ser interrogado pessoalmente pelo camarada Otelo. Só descansei depois da Secretária-geral jurar por Marx, Estaline e Lenine, que não chamava o temido exército vermelho da Região Militar de Lisboa. Depois de me acalmar, a camarada prófe tentou fazer-me uma lavagem cerebral à velha moda do capa jê bê, procurando-me convencer que se os comunistas fossem de facto vampiros nunca defenderiam um “sol a brilhar para todos nós” porque o sol mata todos os vampiros e seus derivados. Para não complicar ainda mais a minha situação fiz um ar convencido, e bastante arrependido, mais ou menos como aquele que via os pides dê jê ésse fazer na televisão (ou RTP), apesar de saber que aquilo do “sol brilhará” não passava de mais um inteligente estratagema dos comunistas para esconder o facto de andarem mesmo a sugar o sangue das criancinhas. Felizmente que não tinha contado toda a verdade ao meu coleguinha delator, caso contrário teria sido o meu fim: nem sequer a camarada professora conseguiria arranjar uma boa justificação para o facto do camarada Álvaro Cunhal, tal e qual um bom vampiro, andar sempre a dormir em locais incertos e desconhecidos.

Foi a partir desse dia que me apercebi que morava dentro de mim um ainda desconhecido gene direitista que, para meu próprio bem, teria de aprender a dominar.

Cena do próximo capítulo: “(…) Depois da senhora Vera Lagoa ter atirado a primeira pedra em direcção à sede do pê cê pê, todos se apressaram em seguir-lhe o exemplo. (…) "

[continua…]

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4 Comments:

Blogger LopesCaBlog said...

Feliz Páscoa ;)

quinta-feira, março 20, 2008 1:17:00 da manhã  
Blogger PDuarte said...

E não te mandarem para o Campo Pequeno foi uma grande sorte.

quinta-feira, março 20, 2008 3:08:00 da manhã  
Blogger Nelson Reprezas said...

O pormenor da régua na cabeça do colega faz-me pensar na aplicação que o sistema poderia ter ainda hoje :)))

quinta-feira, março 20, 2008 8:06:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Boa Páscoa para todos.

Quanto ao comentário do pduarte, aconselho vivamente a leitura do próximo capitulo... porque vou mesmo parar ao Campo Pequeno. :)

quinta-feira, março 20, 2008 11:25:00 da manhã  

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