quarta-feira, dezembro 19, 2007

Onde é que eu já vi isto?

As palavras saltando do livro com magia intempestiva. Afinal encontro alguém estruturante. E, não resistindo à tentação, arranca das palavras mágicas e dactilografa-as com despudorado prazer. A técnica não é de todo para aqui chamada.

"Quando o ser humano pretende imitar a outrem, já não é ele mesmo. Assim também a imitação servil de outras culturas produz uma sociedade alienada ou sociedade-objecto. Quanto mais alguém quer ser outro, tanto menos é ele mesmo.
A sociedade alienada não tem consciência do seu próprio existir. (...). O ser alienado não olha para a realidade com critério pessoal, mas com olhos alheios. Por isso vive uma realidade imaginária e não a sua própria realidade objectiva. Vive através da visão de outro país. Vive-se Rússia ou Estados Unidos, mas não se vive Chile, Peru, Guatemala ou Argentina.
O ser alienado não procura um mundo autêntico. Isto provoca uma nostalgia: deseja outro país e lamenta ter nascido no seu. Tem vergonha da sua realidade. Vive em outro país e trata de imitá-lo e se crê culto quanto menos nativo é. Diante de um estrangeiro tratará de esconder as populações marginais e mostrará bairros residenciais, porque pensa que as cidades mais cultas são as que têm edifícios mais altos. Como o pensar alienado não é autêntico, também não se traduz numa acção concreta.
É preciso partir de nossas possibilidades para sermos nós mesmos. O erro não está na imitação, mas na passividade com que se recebe a imitação ou na falta de análise ou de autocrítica.
Julga-se que os bolivianos ou panamenhos são preguiçosos, porque são bolivianos ou panamenhos. Por isso procura-se ser boliviano ou panamenho.
Acredita-se que ser grande é imitar os valores de outras nações. (...).
Outro exemplo de alienação é a preferência pelos técnicos estrangeiros em detrimento dos nacionais.
A sociedade alienada não se conhece a si mesma; é imatura, tem comportamento exemplarista, trata de conhecer a realidade por diagnósticos estrangeiros.
Os dirigentes solucionam os problemas com fórmulas que deram resultado no estrangeiro. Fazem importação de problemas e soluções. Não conhecem a realidade nativa.
Antes de admitir soluções estrangeiras, teria de se perguntar quais eram as condições e características que motivaram esses problemas. Porque o ano de 1966 da Rússia ou dos Estados Unidos não é o mesmo 1966 do Chile ou da Argentina. Somos contemporâneos no tempo, mas não na técnica.
Além do mais, os técnicos estrangeiros chegam com soluções fabulosas, sem um julgamento prévio, (...).
As soluções importadas devem ser reduzidas sociologicamente, isto é, estudadas e integradas (...). Devem ser criticadas e adaptadas; neste caso, a importação reinventada ou recriada. Isto já é desalienação, o que significa senão autovaloração.
Geralmente, as elites acusam o povo de fraqueza ou incapacidade e por isso suas soluções não dão resultado. Assim, as atitudes dos dirigentes oscilam entre um otimismo ingênuo ou um pessimismo ou desespero. É ingenuidade pensar que a simples importação de soluções salvará o povo. Isso se passa entre os candidatos que, por não conhecerem a fundo os problemas do poder, fazem mil promessas e ao chegar ao poder encontram mil obstáculos que, às vezes, os fazem cair no desânimo. Não se trata de desonestidade, mas de ingenuidade."

Sociedade Alienada in FREIRE, Paulo, Educação e Mudança, (2007). São Paulo: Paz e Terra. p. 35-36.


Questões pertinentes:

1 - Qual a família ideológica de Paulo Freire?
Esquerda. Defensor da educação popular. Responsável por ampla produção técnica na área da educação e prática de alfabetização. Conceitos-chave na sua obra: conscientização, consciência crítica, consciência ingénua, educação bancária, educação popular, empatia, compromisso, engajamento.

2 - A sua teoria educacional está ao serviço de que ideologia?
Esquerda, no sentido em que os valores da esquerda conduzem à valorização do ser humano e para a construção de uma sociedade fomentadora da igualdade de direitos e de oportunidades. Contudo, apesar de os seus conceitos se poderem conotar ideologicamente com a esquerda, e uma vez que a sua teoria educacional constroi os seus alicerces partindo da libertação do homem através da consciência crítica, diremos que países totalitários, sejam eles de direita ou de esquerda, olham para o seu conceito de educação como ideias perigosas.

3 - Outras questões:
- poderá a educação descomprometer-se da nossa ideia de homem e de sociedade?
- quem defende o mau estado geral de Portugal é tão só alienado? Ou realista?
- Portugal nunca poderá ultrapassar o seu fatalismo pois os seus nativos são pouco dados ao esforço e visão estruturante?
- os portugueses estão fadados à ignorância, menoridade intelectual, falta de civismo, educação?
- quando falamos de portugueses e Portugal estaremos a falar de nós ou dos outros?
- quando falamos mal de Portugal teremos uma ideia aprofundada de Portugal?
- devemos generalizar comportamentos, atitudes e valores?
- poderemos considerar os portugueses como seres alienados dado que cada vez são mais correntes expressões como: o chico esperto português, um país de corruptos, os políticos portugueses são todos uns corruptos, os médicos portugueses são x, os advogados portugueses são y, os professores são z, os formadores são p, etc, etc, etc.

4 - Para mim, é claro como a água o seguinte:
- enquanto não debatermos objectiva e honestamente estas questões não conseguiremos sair do mau-estar social a que chegámos.
- esse debate deverá ser aprofundado e arredado de preconceitos. O que pretendo dizer com preconceitos? ideias genéricas acerca de algo sem aprofundamento. Por exemplo: os portugueses são pouco generosos, logo somos um país com falta de civismo e solidariedade. Esse ideia quando confrontada com a opinião de um estrangeiro acerca de nós cai por terra, porquê? Seremos muito generosos para os estrangeiros e pouco generosos entre nós?
- com todo este artigo não se pretende ofender, provocar gratuitamente, defender uma ideia concreta acerca do ser português, deve ser apenas encarado como um tijolo para ajudar à reconstrução de um edifício em ruínas, é que está à beira de ser transformado numa pousada (elite? juventude?)*.


* - estará mesmo, Nancy? pelos vistos tu és das que não acreditas na mutabilidade da realidade. Ai essa consciência crítica, ai essa consciência crítica.

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A alienação da realidade em que se vive é um factor transversal em qualquer sociedade, embora mais acentuada em nações onde a auto estima não tem capacidade para se desenvolver.
Então olha-se para o exterior, e tenta-se arranjar uma fuga para compensar o desalento envolvente.
É um problema sério, que envolve diversos factores geradores de certos comportamentos de carência nos mais diversos domínios.

quarta-feira, dezembro 19, 2007 11:09:00 da tarde  
Blogger PV said...

"Esse ideia quando confrontada com a opinião de um estrangeiro acerca de nós cai por terra, porquê?"

Sem qualquer "preconceito" diria que não "cai por terra" não senhora! A "generosidade" a "solidariedade" muito antes de serem espontâneas são actos civilizacionais. E "porquê"? Por que o "estrangeiro" tem dois níveis de julgamento, o primeiro rápido e subjectivo, e o segundo ponderado à luz da realidade, e essa é incontornável, os "factos são cabeçudos" como se costuma dizer...!

quinta-feira, dezembro 20, 2007 11:50:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Caros ajfaria e pv agradeço os comentários.

quarta-feira, dezembro 26, 2007 10:34:00 da manhã  

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