Abstenção e democracia
A subida da abstenção é algo que deveria preocupar-nos. As razões são diversas:
- descredibilização irresponsável dos políticos por meios de comunicação social que respondem acriticamente às agendas ocultas das agências de comunicação e dos seus múltiplos clientes;
- naturalização do debate de ideias à escala privada e afastamento da maior parte da população do debate público, devido tanto a agendas ocultas dos diversos partidos, como a caciquismos locais ou outros fenómenos;
- interesses de esquizofrenia social de grupos diversos (políticos, económicos, culturais) nacionais e supranacionais;
- necessidade de educação e escolarização ainda não interiorizadas pela população que continua encostada a mensagens mistificadoras da superioridade da ignorância e do trabalho manual face ao trabalho intelectual, bem como incompreensão de que o trabalho intelectual é um tipo de trabalho como outro qualquer;
- sistema de ensino repleto de saber abstracto, teórico e que penaliza fortemente a camada da população mais ligada ao concreto. O mesmo não quer dizer que se aplique um conhecimento distinto para as diversas camadas das populações. Regresso de alguns velhos do Restelo travestidos de novas roupagens pretendendo instalar um determinado senso comum: as novas práticas pedagógicas significam menorização do saber e do conhecimento. Uma estratégia bem construída mas cujos resultados serão tão irresponsáveis como as das práticas pedagógicas que contestam;
- desvalorização da cultura popular e entronização de uma cultura de elite, cujo acesso pertence a estratos sociais específicos, articulação com tentativas de impedir o acesso das camadas populares à educação como património da humanidade. Criação de uma outra articulação já devidamente desocultada por pensadores do século XIX, mas cujos motivos ainda continuam fortemente enraizados nas elites e nos corredores dos diversos tipos de poder;
- discursos bafientos e pretensamente doutos, menorização de outros tipos de saber como desnecessários e incultos. Criação de regras homogéneas de saber, estar e ser potenciadoras de exclusão das camadas da população que não tiveram acesso a essas regras, e pedagogias inculcadas num saber que foi naturalizado e sem necessidades de desocultação crítica.
- apologia da passividade e conformismo.
Enfim, deveríamos estar cada vez mais conscientes que a liberdade individual, a igualdade de direitos perante a lei e a democracia andam de mãos dadas. Mas para certas camadas da população educadas pela e na passividade, fortemente penalizadas por diversas circunstâncias históricas, as camisolas continuam a ser costuradas com tecidos velhos. Ironicamente são as camadas populares, preocupadas exclusivamente com a sua sobrevivência e a dos seus filhos, os alvos principais de discursos políticos irresponsáveis (CDS e extrema direita em geral) que pretendem criar um ambiente de legitimação de formas de governo "providenciais" e que contribuem para que a palavra discriminação se revista de contornos anti-democráticos. Enfim, manter na ignorância vastas camadas da população é, afinal, uma velha-nova estratégia e todos deveríamos preocupar-nos com os seus enviesamentos indesejáveis para a democracia.
Um dia destes um comentador assustou-me (Nuno Rogeiro). Afinal, parecia-lhe absolutamente normal um governo legitimado pelas eleições não poder governar, ao que parece havia dúvidas quanto à possibilidade do programa do governo poder ser chumbado pela oposição, daí ser até bastante legítimo (para NG) Cavaco Silva ver-se na contingência de nomear um governo da sua própria iniciativa.
O quê?
Como é que um comentador poderá ser irresponsável a este ponto?
O que significa para esta gente a expressão "eleições democráticas"?
Parece-me que uma postura ética e a decência intelectual são absolutamente necessárias nos tempos que correm.
"Só se obtém o maior efeito fortalecedor da liberdade sobre o carácter quando o indivíduo sobre o qual se actua ou é ou procura ser cidadão tão inteiramente privilegiado como qualquer outro. O que é ainda mais importante do que esta questão de sentimento é a disciplina prática que o carácter adquire pela solicitação acidental aos cidadãos para exercerem qualquer função social, por algum tempo e por sua vez. Não se considera suficientemente quão pouco existe na vida ordinária da maior parte dos homens capaz de lhes proporcionar qualquer largueza, seja de concepção seja de sentimentos. O trabalho deles é rotineiro, não trabalho de amor, mas de interesse próprio numa forma elementar, para satisfação das necessidades quotidianas; nem o que se faz nem o processo para fazê-lo leva o espírito a pensamentos ou a sentimentos que se estendam além de indivíduos; se lhes estão ao alcance livros instrutivos, não há estímulos para lê-los; em muitos casos o indivíduo não tem acesso a qualquer pessoa de cultura muito superior à que possui. Dar-lhe algo para fazer a favor do público supre, até certo ponto, todas essas deficiências. Se as circunstâncias permitirem que seja considerável o volume de obrigações públicas que lhe são confiadas, tornar-se-á educado."
MILL, S. (1967). O Governo Representativo. Lisboa: Arcádia, pp. 84-85.
Stuart Mill é o digno representante da democracia representativa. Apesar de alguns dos seus contestatários considerarem o seu discurso teórico algo ambíguo, nomeadamente no que diz respeito à capacidade económica do seu representante e ao poder legitimado por essa capacidade para participar na vida pública, verificamos nas linhas anteriores uma desocultação das razões que levam alguns representantes pretenderem manter os seus representados na ignorância. Obviamente que a leitura de Marx, o digno representante da democracia participativa, será algo diferente.
- descredibilização irresponsável dos políticos por meios de comunicação social que respondem acriticamente às agendas ocultas das agências de comunicação e dos seus múltiplos clientes;
- naturalização do debate de ideias à escala privada e afastamento da maior parte da população do debate público, devido tanto a agendas ocultas dos diversos partidos, como a caciquismos locais ou outros fenómenos;
- interesses de esquizofrenia social de grupos diversos (políticos, económicos, culturais) nacionais e supranacionais;
- necessidade de educação e escolarização ainda não interiorizadas pela população que continua encostada a mensagens mistificadoras da superioridade da ignorância e do trabalho manual face ao trabalho intelectual, bem como incompreensão de que o trabalho intelectual é um tipo de trabalho como outro qualquer;
- sistema de ensino repleto de saber abstracto, teórico e que penaliza fortemente a camada da população mais ligada ao concreto. O mesmo não quer dizer que se aplique um conhecimento distinto para as diversas camadas das populações. Regresso de alguns velhos do Restelo travestidos de novas roupagens pretendendo instalar um determinado senso comum: as novas práticas pedagógicas significam menorização do saber e do conhecimento. Uma estratégia bem construída mas cujos resultados serão tão irresponsáveis como as das práticas pedagógicas que contestam;
- desvalorização da cultura popular e entronização de uma cultura de elite, cujo acesso pertence a estratos sociais específicos, articulação com tentativas de impedir o acesso das camadas populares à educação como património da humanidade. Criação de uma outra articulação já devidamente desocultada por pensadores do século XIX, mas cujos motivos ainda continuam fortemente enraizados nas elites e nos corredores dos diversos tipos de poder;
- discursos bafientos e pretensamente doutos, menorização de outros tipos de saber como desnecessários e incultos. Criação de regras homogéneas de saber, estar e ser potenciadoras de exclusão das camadas da população que não tiveram acesso a essas regras, e pedagogias inculcadas num saber que foi naturalizado e sem necessidades de desocultação crítica.
- apologia da passividade e conformismo.
Enfim, deveríamos estar cada vez mais conscientes que a liberdade individual, a igualdade de direitos perante a lei e a democracia andam de mãos dadas. Mas para certas camadas da população educadas pela e na passividade, fortemente penalizadas por diversas circunstâncias históricas, as camisolas continuam a ser costuradas com tecidos velhos. Ironicamente são as camadas populares, preocupadas exclusivamente com a sua sobrevivência e a dos seus filhos, os alvos principais de discursos políticos irresponsáveis (CDS e extrema direita em geral) que pretendem criar um ambiente de legitimação de formas de governo "providenciais" e que contribuem para que a palavra discriminação se revista de contornos anti-democráticos. Enfim, manter na ignorância vastas camadas da população é, afinal, uma velha-nova estratégia e todos deveríamos preocupar-nos com os seus enviesamentos indesejáveis para a democracia.
Um dia destes um comentador assustou-me (Nuno Rogeiro). Afinal, parecia-lhe absolutamente normal um governo legitimado pelas eleições não poder governar, ao que parece havia dúvidas quanto à possibilidade do programa do governo poder ser chumbado pela oposição, daí ser até bastante legítimo (para NG) Cavaco Silva ver-se na contingência de nomear um governo da sua própria iniciativa.
O quê?
Como é que um comentador poderá ser irresponsável a este ponto?
O que significa para esta gente a expressão "eleições democráticas"?
Parece-me que uma postura ética e a decência intelectual são absolutamente necessárias nos tempos que correm.
"Só se obtém o maior efeito fortalecedor da liberdade sobre o carácter quando o indivíduo sobre o qual se actua ou é ou procura ser cidadão tão inteiramente privilegiado como qualquer outro. O que é ainda mais importante do que esta questão de sentimento é a disciplina prática que o carácter adquire pela solicitação acidental aos cidadãos para exercerem qualquer função social, por algum tempo e por sua vez. Não se considera suficientemente quão pouco existe na vida ordinária da maior parte dos homens capaz de lhes proporcionar qualquer largueza, seja de concepção seja de sentimentos. O trabalho deles é rotineiro, não trabalho de amor, mas de interesse próprio numa forma elementar, para satisfação das necessidades quotidianas; nem o que se faz nem o processo para fazê-lo leva o espírito a pensamentos ou a sentimentos que se estendam além de indivíduos; se lhes estão ao alcance livros instrutivos, não há estímulos para lê-los; em muitos casos o indivíduo não tem acesso a qualquer pessoa de cultura muito superior à que possui. Dar-lhe algo para fazer a favor do público supre, até certo ponto, todas essas deficiências. Se as circunstâncias permitirem que seja considerável o volume de obrigações públicas que lhe são confiadas, tornar-se-á educado."
MILL, S. (1967). O Governo Representativo. Lisboa: Arcádia, pp. 84-85.
Stuart Mill é o digno representante da democracia representativa. Apesar de alguns dos seus contestatários considerarem o seu discurso teórico algo ambíguo, nomeadamente no que diz respeito à capacidade económica do seu representante e ao poder legitimado por essa capacidade para participar na vida pública, verificamos nas linhas anteriores uma desocultação das razões que levam alguns representantes pretenderem manter os seus representados na ignorância. Obviamente que a leitura de Marx, o digno representante da democracia participativa, será algo diferente.
"Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência."
MARX, K. e ENGELS, F. (1975). Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã e outros textos filosóficos. Lisboa: Editorial Estampa, p. 62.
A adaptação do discurso de Marx na ex-URSS (e não só) foi drástico para a qualidade da democracia e para a vida das populações, ao que parece o bem-estar social tornou-se incompatível com o bem-estar político, económico e cultural (há quem lhe chame outros nomes).
A "ditadura" de um partido, seja ele qual for, torna-se um problema para a qualidade da democracia, talvez todos tenhamos a ganhar com um maior equilíbrio entre as diversas forças partidárias, apesar das inevitáveis debilidades, problemas e maior conflito de interesses. Em Portugal as duas maiorias (PSD e PS) potenciaram (ambas) climas autoritários e restrições à democracia substantiva, apesar de ambas as forças ideológicas pretenderem, em momentos distintos, reescrever a história.
Etiquetas: Elisabete no mundo das fadas
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