segunda-feira, outubro 29, 2007

O russo

Dois mil e sete. Ano da graça de dois mil e sete. Assim marcava o calendário lá de casa pendurado na parede da cozinha ao lado da porta e assim dizia um outro calendário no talho da aldeia onde se tinha ido aviar antes de ir buscar a Vanessa Marise à escola no aixam azul metalizado. Manel Francelino não se conformava. Ele era obras na estrada, ele era obras aqui e acolá. Uma ocasião a sua Vanessa Marise ia chegando atrasada e isso é que não podia ser que já se sabe a professora na perdoa, ai não não, mas aquilo era trânsito que começava logo ali na rotunda. Voltou a fazer contas. Ora então, pelas suas contas, essas mesmo que se desenhavam agora na sua cabeça, faltavam ainda uns anos. Nesta altura a santa estava ali perto, de resto, a santa nunca ia muito longe, mas ainda assim eram dezassete freguesias e, por conseguinte, só voltava dali a uns poucos de anos. Ainda não era já, o que piorava de sobremaneira o estado de confusão do Manel Francelino. Atão, se a senhora da Nazaré na bem este ano, pra qué aquilo? E o Manel Francelino era rapaz muito dado a saber quês e porquês, herdou-o por parte da mãe e do pai, já se sabe, herdou-o por parte da aldeia toda que, há uns anos, era tudo primos e primas e, tantos os primos como as primas, as tias e os tios, eram rapazes muito dados a saber os pormenores da vida alheia, com particular incidência na árvore genealógica do inquirido. O pior de tudo era se, por exemplo, lhe saltava ao caminho um apelido conhecido, Duarte ou Jesus. Ó pá, aquilo era uma máquina, um computador com uma velocidade de processamento de dados infalível Ah, já tou a beri! Bocê é filho do ti João do Paúl, que era irmão da Francelina da Chanca. Ah pois, Atão, esse tá casado com uma rapariga que é cunhada do primo do Chico da Amendoeira e essa rapariga tem uma prima que é cunhada da nha irmã… Ah pois claro. Como é que não vi isso antes? Quando chegou a casa, disse à Quina Francelino A Senhora da Nazaré bem este ano! A mulher sabia que o Manel Francelino não ia para novo, notava-se na dureza de ouvido evidente, julga-se que acentuada nos momentos em que a conversa não lhe convinha, mas daí até antecipar a vinda da santa à freguesia ia um passo de gigante. Bem o quê, Manel? Atão inda falta tantos anos! Mas tu na bês que eles andam a arranjar a estrada? É só obras. Só pode ser a santa. Quina Francelino encolheu os ombros, chamou pela Vanessa Marise na fosse a neta tar a namorari e voltou à lida dos patos e coelhos.
No dia seguinte, o Manel Francelino investiu. Na podia ser, atão, na podia ser, ele era a estrada com tapete novo, ele era os traços a serem pintados, os muros. Perguntou ao rapaz que estava lá entretido a mandar parar os carros, uma vida triste, a levar com os fumos dos escapes e agora vermelho, agora verde, levanta a tabuleta, vira a tabuleta, siga, siga. O homem foi peremptório na resposta. É o russo, ti Manel, é o russo que vem aí. Ah, disse o Manel Francelino O Ruço sobrinho da Ti Mari Ruça? Não, homem, o russo, o Putin! O Pinto? Na tou a ber, mas deve ser importante esse ruço. Pois, é importante é. Manel Francelino ficou desolado. Afinal havia alguém mais importante que a senhora da Nazaré, ainda por cima homem, ruço e não era o sobrinho da Ti Mari Ruça.

imagem: minha

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