Dez textos sobre Economia(s) (II)
«Não têm outra coisa a fazer senão pôr a descoberto os erros e as faltas dos outros. Nestas condições, não é muito difícil a essa gente viver usando de alguma precaução e cautela. E de tal se gabam com o maior atrevimento. Estão, por exemplo, convencidos de que todos lhe devem prestar vassalagem e olham o mundo como se fosse uma despensa. Somente vêem néscios nos que os rodeiam, e estão certos de poder espremê-los até à última gota, quando o desejem. Têm-se, de certo modo, senhores do mundo, e, personagens tão espertos quanto importantes, parecem estar persuadidos de que esta sábia ordem das coisas lhes pertence. Assemelham-se (...) aos desavergonhados que conseguem enganar os outros tantas e tão variadas vezes, que eles próprios chegam a acreditar que tudo aquilo, que dizem, fazem ou deixam de fazer, tem a sua razão de ser. (...) A natureza toda, o mundo inteiro, não é para eles mais que um grande e formoso espelho, criado, na aparência, com o único fim de que esses pequenos deuses possam admirar-se continuamente nele, sem que se deva reflectir nada nem ninguém, excepto as suas imagens soberanas.»
Fédor Mikhaïlovitch Dostoievski, "O Pequeno Herói", Publicações Europa-América
Se "Tolstoi é um gigante moralista", Dostoievski é um portento psicológico. De outra forma, como poderia ter ele acertado na mouche na definição do pequeno e médio empresário português? E a pequenez tanto se refere à dimensão da empresa como à da mentalidade. Exemplos são mais que muitos: um que queria meter um relógio de ponto na empresa cinco minutos adiantados à entrada e outros cinco atrasados à saída, proibindo os relógios dentro da instalações; outro que telefonava cinco minutos antes das saída aos seus colaboradores motoristas para lhe fazerem mais uma carga e achava que não tinha de lhe pagar as horas porque era um favor que o empregado lhe tinha feito, o «empresário» que passou um cheque de quarenta euros e pediu para só metê-lo no fim do mês porque tinha de ver se tinha cobertura, ou outros dois que discutindo sobre uma nova legislação travavam o seguinte diálogo:
- Não é assim F.
- É, é. Então se o M. disse é porque é.
- Ora, ora, o M. não percebe nada disso. Eu falei com o P. ele disse que não era assim. E olha que o P. já anda nisto ainda o M. não era nascido.
Nisto um advogado coloca-lhe a tal lei em cima da mesa. Olham para o maço de folhas, um deles dá uma vista de olhos, guarda-a numa gaveta da secretária e continuam
- Mas o P. está mais dentro dessa área e conhece melhor esses assuntos.
- (...)
Estes são exemplos caricatos, verdadeiros e particulares, mas que expressam bem a mentalidade das gentes.
Mas é no geral que está o mal: não criam produtos com valor, têm a mentalidade do quero posso e mando, são incapazes de delegar competências, os funcionários são vistos como criados preguiçosos, escrevem anúncios nos jornais a dizer que oferecem quinhentos euros/mês, e fazem questão de colocá-lo em letras gordas para realçar "tamanha generosidade", são os recibos verdes a empregados com horário e obrigações, é a convicção de o Estado é que lhes deve dar os subsídios e pagar a formação aos seus funcionários, são as ameaças aos empregados que queiram estudar e a recusa de admissão de pessoas com o estatuto trabalhador-estudante, é a falta de associativismo, pela eterna desconfiança e pelo lema «no que é meu mando eu» que lhes impede de obter um único cêntimo com ganhos de escala, é a admissão de universitários pelo tempo de nove meses - o tempo em que só têm de lhe pagar um salário mínimo, o Estado paga o resto - mandá-lo embora e depois voltar a contratar outro nos mesmos moldes, são as vendas a negro ou sem papel. Não têm a mínima noção do que seja um organigrama de uma empresa, a higiene e segurança no trabalho, as leis que regem a actividade que se inserem, como se executa um projecto de investimento ou de financiamento, de como pode a tecnologia melhorar a sua produtividade, as obrigações ambientais a que devem obedecer, quais os desafios e oportunidades da globalização apresenta. Respondem sempre «está mal», «está muito mal» ou «está cada vez pior» à pergunta: «como é que vão os negócios?». No entanto, trocam de Mercedes como quem troca de camisa, constroem mansões aberrantes e do pior gosto possível para seu usufruto, a empresa deles é sempre a melhor do sector e eles são os melhores empresários do mundo.
Todas as generalizações são injustas, e a que está aí em cima por certo que também o é. Há excepções que tentam mudar as coisas, que tentam fazer de forma diferente, e diria eu com conhecimento de causa, fazer de forma correcta e sustentada o desenvolvimento das suas empresas. No entanto, a grande maioria das PME's funciona na forma acima descrita. Sabendo-se que as PME's representam cerca de noventa por cento do tecido empresarial português, resta-nos esperar que a nova geração de administradores faça a gestão de forma diferente. Caso contrário, não há governo, nem incentivos, nem subsídios comunitários que nos tirem deste marasmo de desenvolvimento económico. E isso vai ser uma tarefa longa, árdua e que não depende da mudança de governos; depende antes e acima de tudo de uma coisa bem mais complexa: a mudança de mentalidades.
Etiquetas: Cada editora escreve o nome de Dostoievski de forma diferente, Isto está mau, PME
3 Comments:
Excelente reflexão. Bj
Agradeço o excelente, já de reflexão não tem muito: tem mais de triste constatação.
Este texto reflecte, infelizmente, a nossa realidade e quem convive com ela tem duas hipóteses: ou é um cínico incorrigível ou reflecte, escreve e dá a conhecer aos outros, ainda bem q optaste pela segunda via.
Enviar um comentário
Voltar à Página Inicial