sexta-feira, junho 15, 2007

Perguntem-lhe o resultado

Hoje que o país é avassalado pelas quezílias do clubismo fervoroso, não se pode viver sem pensar nele, o mais calmo dos adeptos e o mais fervoroso benfiquista. Revela-se tranquilo, lento no andar, pouco apressado no linguajar e descomplicado na alma. E assim se apresenta, escondendo involuntariamente a sua clubite febril. Há algum tempo já sentávamo-nos a uma mesa, quatro jovens estudantes de letras. Sobre a mesa excertos da versão original de A Oeste Nada de Novo narrando um facto na História da Humanidade. Ele, não obstante, mantinha-se impassível e inalterado perante as descrições de costelas trespassadas com baionetas e ratos alimentando-se de imberbes cadáveres nas trincheiras enlameadas. Pouco lhe tocou a agonia dos gaseados e continuou, indiferente e alheado, saboreando umas deliciosas bolachas directamente do pacote. Tudo normal. A sensibilidade é um direito e cada um sente como quer, pode e sabe. Nada de novo, portanto, nem a Oeste nem a Leste, não fora o nosso fervoroso adepto objector de consciência.
Nesse mesmo tempo, recostando-nos tranquilamente na preguiça de nada fazer numa esplanada da capital, dirigiu ele um pedido delicado ao empregado de serviço. O que desejava era água. Água, tão-somente água, pedido satisfeito de imediato. Aparentemente, entenda-se, pois ao colocar a garrafa sobre a mesa, o nosso adepto reformulou o seu pedido Não tem antes…? ao que se seguiu uma qualquer marca de água, desvanecida já na memória. Que gosto requintado, que paladar apurado, pensei de imediato, que quem gosta de água é como quem aprecia vinho: nem todos são iguais nem sabem ao mesmo. A razão do pedido, porém, residia na paixão da sua alma, o clube rubro. Fui, então, informada pelo benfiquista dos sete costados que a dita água pertenceria a um indivíduo com sobrenome de queijadas, possuidor do mais terrível defeito dos defeitos: era sportinguista, lagarto, o das águas, e por conseguinte, a água foi substituída por outra menos verde, e o sorriso regressou-lhe ao rosto.
Tivesse o Benfica existido no tempo em que Moisés presenteou o mundo com as tábuas, teriam constado onze em vez de dez mandamentos: Não pertencerás a um clube verde! com a alínea E muito menos a um azul! E assim ele continuou pela vida, não adquirindo objectos Phillips, por ser a patrocinadora do PSV, equipa responsável pela derrota do seu Benfica em Estugarda, bebendo leite Parmalat, gritando ingenuamente junto do ecrã de televisão Anda, João! Corre, João! Vai, João! e torcendo tanto mais pela selecção, quanto mais jogadores benfiquistas integrar. O João, é sabido, deu-lhe grandes desgostos e acredito que nunca terá recuperado do golpe violento.
Há menos tempo, porém, sentávamo-nos a uma mesa, seis criaturas, estudantes da vida desta feita. Sobre a mesa um belíssimo fondue, excelentemente regado, seguido de um aprazível serão, que atingiu o seu apogeu quando ele exibiu a colecção exímia de bilhetes de entretenimentos passados. Parte da sua vida estava ali perante os olhos dos presentes, um curriculum vitae curioso e único. Pouco lhe serviria para um concurso profissional, é certo, mas constituía um património incalculável no seu percurso pessoal. As memórias mescladas com os afectos. Carinhosamente ia passando revista aos seus bilhetes: cinemas, teatros e bola, bola, e mais bola, bola com fartura. Sim, a bola destacava-se em quantidade desproporcional relativamente às restantes actividades de lazer e, a corroborar este fervor pela redondinha, encontravam-se fotografias a preceito, com cachecóis e bandeiras, barretes e galhardetes. As memórias reavivaram-se Olha, isto foi em …! Ena pá! e mais um bilhete e mais uma fotografia: ele de pé ao lado da bandeira, ele agachado ao lado da bandeira, ele a agarrar a bandeira do lado direito, ele a agarrar a bandeira do lado esquerdo Ena pá! Olha aqui! Vê se conheces este…
E de repente, assim como que possuído por uma força exterior, ordena a um dos presentes, perplexo pela natureza do pedido peremptório, Pergunta-me o resultado! ao que foi prontamente obedecido Qual foi o resultado? Sem hesitar, nem sequer pestanejar, remata com um livre directo o resultado do plantel rubro de mil novecentos e troca o passo. E assim foi enquanto houve bilhetes no seu álbum de recordações, repetindo, até à exaustão, o pedido singular Pergunta-me! Pergunta-me o resultado! De modo que se o virem, perguntem-lhe o resultado. Há perguntas que não têm resposta, uma assim jamais.


Texto que me voltou à memória a propósito deste post.

Imagem daqui

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3 Comments:

Blogger Carlota said...

Leonor, é sempre um prazer ler o que escreves, ó moça mai talentosa!
:)

sábado, junho 16, 2007 8:57:00 da manhã  
Blogger LeonorBarros said...

Obrigada, Carlota :-)

sábado, junho 16, 2007 5:51:00 da tarde  
Blogger cristina said...

Eu admiro esta gente que se lembra que no jogo de há 15 anos a meio da segunda parte, não sei quem marcou um golo de livre à entrada da área descaído para a direita, por cima da barreira e que deu a vitória à equipa por 2-1, que estava a perder logo aos 5min com um golo em fora de jogo precedido de falta e que tinha empatado perto do intervalo depois de um cruzamento perfeito de trivela do não sei quantas.

Eu gosto de ir ao estádio, mas confesso que passado meia hora já não me lembro de metade dos lances.

segunda-feira, junho 18, 2007 9:07:00 da manhã  

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