quinta-feira, junho 14, 2007

Lux

Lux? perguntaste tu. Lux, como o sabonete? Era dia de semana, azul e luminoso, e passeávamos pela cidade de meu coração, a cidade que amo acima de todas, porque lá fala-se a minha língua e a minha língua é a minha Pátria, como Pessoa afirmou. O caos é ele próprio uma forma de vida e cidade alguma consegue mimar-nos como Lisboa, com a luz de Lisboa. A primeira luz que vi, a primeira cor do mundo foi a cor de Lisboa e a última cor que verei, será a de Lisboa também?
Cidade branca, cidade cinzenta, cidade azul, pintada de cores e humores, caprichosa e voluntariosa, paciente e terna. Como línguas, as ruas alongam-se até ao rio. Há carros, sempre carros e camionetas e comboios e eléctricos. Outrora amarelos, mas ainda da Carris. Há pobres e ricos, há pretos e brancos, há louros e morenos, há mães e putas, há viúvas e órfãos. Há pedintes, nacionais e estrangeiros, anunciando o advento da multiculturalidade também nesta “triste forma de vida” e arrumadores, andrajosos e miseráveis, quase todos, convictos no desempenho da sua função e sempre sequiosos da recompensa, obtida mais por receio do que merecimento.
A vida flui calma no stress mediterrânico de quem tem muito que fazer, embora os horários mais não sejam do que ténues pontos de referência para quem quer ver as notícias das oito ou das dez ou as incontáveis telenovelas de gosto duvidoso, cujo efeito terapêutico provoca uma catarse, colectiva e individual, em domésticas e executivas, ecoando no ar como um sonoro orgasmo simultâneo.
Assim é a minha cidade. Magnífica, como só ela sabe ser, e todos os dias ela cresce, a cidade, e se deixa descobrir, brindando-nos com as inúmeras vistas e as perspectivas sempre renovadas, ângulos novos reveladores da alma da urbe. Eternamente, o Miradouro de Santa Luzia. Sempre Alfama, sempre o Castelo e a Sé, mas também as zonas ribeirinhas onde paira amiúde a maresia, a maresia do rio. Cheira-me repentinamente a sardinha assada e a manjerico de Santo António de Lisboa, e a cidade torna-se ainda mais colorida, mais feérica. Agrada-me a Lisboa dos roteiros turísticos, a Lisboa brejeira e varina, de braço dado com a mais sofisticada e elegante, e esqueço os subúrbios quase imorais de tanta fealdade e, agora que se me foi o cheiro da sardinha, regressa o fumo semi-opaco das castanhas assadas e sim, agora sim, agora ecoam os versos de Cesário Verde que, também ele, cantou Lisboa, o Tejo e a maresia, e vejo o bulício espesso de que falava Nas nossas ruas, ao anoitecer...
A cidade, a mãe, a matriz. Lado a lado íamos as duas. As duas admirando a cidade, as duas sentindo a cidade onde me puseste no mundo, acredito que não por acaso, e aguardaste ansiosamente que os mínimos olhos de recém-nascida se abrissem, para o mundo, para ti, minha mãe, para a cidade também, na esperança que fossem ínfimas esmeraldas ou pequenitos cristais, cor de mar caribenho, ou talvez duas gotículas do Tejo, indefinidas entre o azul e o verde, como o mar, como o Tejo. Mas não, minha mãe, eram negros os olhos, como duas azeitonas, contas tu e então sorrimos enternecidas e somos verdadeiramente mãe e filha.
Há muita plenitude em ser mãe, muita grandiosidade também, dizem, que de ser mãe nada entendo. Ser filha pode ser pleno e grandioso também. Quando almoças comigo na cidade, quebrando a solidão de horas a fio que mais parecem ser dias, dias cinzentos e opacos, dias sem sol, nem azul, ou quando esperas pacientemente que, empolgada, passe revista a todas as camisas, camisolas, tops e t-shirts, existentes nas lojas de roupa e me fazes notar, como só as mães sabem, que aquela blusa branca, aquela que me parece tão gira e diferente, é exactamente igual a todas as outras que tenho, também isso é belo e igualmente pleno. Este dia, em que ambas comungávamos a urbe encantada sob o brilho dourado do sol do meio-dia, não era dia triste, era grande e perfeito, como o sol de Lisboa, e quando te mostrei um dos locais badalados da noite na cidade e me questionaste algo incrédula a sua graça Lux? Lux como o sabonete? nunca foi tão inebriante nem tão belo o cheiro a sabonete.


foto: minha

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6 Comments:

Blogger Pitucha said...

Que texto liiindo! E que bem contada que está a minha/nossa cidade.
Beijos

sexta-feira, junho 15, 2007 7:35:00 da manhã  
Blogger LeonorBarros said...

Obrigada :-)
Fui buscá-lo ao baú.
Bjs do cinzento de Mafra

sexta-feira, junho 15, 2007 2:04:00 da tarde  
Blogger james stuart said...

Cara Leonor... solicito que me autorize a utilização de parte deste texto (devidamente identificada a autora) no meu blogue.
A qualidade do texto é invejável, tanto no teor como na forma.

Parabéns

segunda-feira, junho 18, 2007 2:46:00 da tarde  
Blogger Leonor said...

Muito obrigada. Pode colocar o texto sim :-)

segunda-feira, junho 18, 2007 10:29:00 da tarde  
Blogger james stuart said...

Por favor... não entendi...
Quem é a autora do texto? Leonor Barros ou Papalagui?

terça-feira, junho 19, 2007 10:21:00 da manhã  
Blogger LeonorBarros said...

Desculpe, agora é que entendi como foi dar ao outro lado... somos a mesma :-)
Isto de ter mais do que uma em mim é o que dá, enganei-me no log in.

quarta-feira, junho 20, 2007 2:37:00 da tarde  

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