quinta-feira, abril 26, 2007

O que se diz ao editor a propósito de poemas


A José OlímPio e Daniel

Eis mais um livro (fio que o último)
de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.

E preciso logo embalsamá-lo:
enquanto ele me conviva, vivo,
está sujeito a cortes, enxertos:
terminará amputado do fígado.

Terminará ganhando outro pâncreas;
e se o pulmão não pode outro estilo
(esta dicção de tosse e gagueira),
me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.

Poema nenhum se autonomiza
no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do dactilografá-lo.

Um poema é o que há de mais instável:
ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações
enquanto em nós e de nós existe.

Um poema é sempre, como um câncer:
que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.

João Cabral de Melo Neto
Vários, Poesia Brasileira do Século XX dos Modernistas à actualidade, Selecção, Introdução e Notas Jorge Henrique Bastos, Lisboa, Antígona, 2002, p. 126

"Nascido em Recife, em 1920, foi diplomata toda a vida, tendo trabalhado em diversos pontos do mundo, incluindo Portugal, onde se reformou da diplomacia. Estreou-se em 1942 com A Pedra do Sono, livro de espessura surrealista, marca que depois abandonou, tornando-se um acérrimo defensor da concisão imagética, do verso racional, equilibrado nas oito sílabas que caracterizam a maioria dos seus poemas (...). João Cabral de Melo Neto faleceu em Outubro de 1999."
Idem

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