domingo, janeiro 21, 2007

Referendo [notas avulsas]

Foto: Zena Holloway

“(…) O carácter insubstituível de todo o ser humano, antes e depois do nascimento, o sentido ético e não apenas histórico que possui a vida humana, a sua inviolabilidade proclamada sem limites na Constituição, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (que proíbe a execução de mulheres grávidas), o abalo que representaria nos fundamentos da sociedade qualquer ruptura ao princípio da inviolabilidade, sobretudo quando a violação parte de quem é mais responsável por essa vida, a demissão de solidariedade que isso implicaria, tudo são motivos que me levam a rejeitar qualquer medida legislativa que envolva a legalização do aborto.
Contra o que acaba de se dizer invoca-se, por vezes, o direito da mulher a dispor do seu próprio corpo; outras vezes, a libertação social da mulher ligada à possibilidade de abortar. Julgo que sem razão.
A mulher não tem, não pode ter, um qualquer direito sobre o feto em nome de um qualquer direito sobre o seu corpo, pois o feto é um ser diferente da mulher, está no seu corpo, depende dele, não faz parte dele (embora o corpo da mulher não seja um seu mero receptáculo).
Nem o poderia ter em nome de um qualquer direito de legítima defesa, porque esse novo ente destinado a nascer não é agressor: agressor poderá ter sido o pai, nunca, o filho; e, se há que punir, o pai deverá ser punido tanto ou mais que a mãe quando tenha sido ele que criou a situação conducente ao aborto.
(…) Por certo, importa reconhecer que a interrupção voluntária da gravidez provoca traumas, traduz e agrava desigualdades económicas e sociais, é um flagelo social. Só que daqui não resulta a necessidade de legalização. Não serão a droga e a prostituição não menos evidentes chagas sociais? E perante os flagelos sociais a atitude correcta não deve ser a de os combater e prevenir? E, designadamente, a atitude de esquerda e de progresso não deve ser de transformação da realidade, e não uma atitude de resignação e aceitação?
De resto, o aborto, é, na enorme maioria dos casos, a consequência das injustiças e das taras da sociedade. É consequência da falta de educação, de planeamento familiar, de emprego, de salário, de protecção da maternidade e da paternidade. Mas é igualmente fruto da civilização, ou da crise da civilização, hedonista, materialista e capitalista. É fruto da comercialização do sexo, da desresponsabilização em relação aos próprios actos, do consumismo a todo o custo que tal civilização tem engendrado.
(…) O que é mais fácil, o que serve mais os interesses dominantes, criar postos de trabalho, construir casas, mudar as relações económicas e sociais, ou liberalizar o aborto? O que está mais de acordo com a Constituição é realizar os direitos fundamentais relativos à saúde, à segurança social, à habitação, à família, ou facilitar a interrupção voluntária da gravidez, adiando assim o cumprimento da Constituição?
Qual a oportunidade de reabertura desta questão na difícil conjuntura que o país atravessa? Não seria mais adequado propor e adoptar medidas legislativas e políticas tendentes à efectivação desses direitos? (em vez de, também por outro lado, o Parlamento e os partidos gastarem tanto tempo com a revisão constitucional?) Qual a oportunidade de medidas legislativas e administrativas de favorecimento do aborto num país como Portugal com uma gravíssima crise de natalidade? Não incumbria, bem pelo contrário, ao Estado e à sociedade aproveitar a figura da adopção e criarem novas instituições para receberem crianças não desejadas ou com problemas?
(…) Mas será a questão da interrupção voluntária da gravidez – ou seja, da interrupção voluntária de uma vida humana – uma verdadeira questão de crenças ou convicções, pelo menos fora dos casos de malformação ou de perigo para a vida da mãe? Será uma questão de liberdade de consciência ou não será, antes, uma questão que mexe com as estruturas duma república baseada na dignidade da pessoa humana?"

Jorge Miranda
In Público, 15 de Fevereiro de 1996

Artigo completo aqui.

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1 Comments:

Blogger cristina said...

«O que está mais de acordo com a Constituição é realizar os direitos fundamentais relativos à saúde, à segurança social, à habitação, à família, ou facilitar a interrupção voluntária da gravidez, adiando assim o cumprimento da Constituição?»

Mas porque é que isso há-de ser incompatível?... Descriminalizar o aborto não impede a promoção do planeamento familiar, nem o acompanhamento da mulher grávida ou o apoio social à familia!!!

domingo, janeiro 21, 2007 10:58:00 da tarde  

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