quinta-feira, dezembro 04, 2008

Uma tragédia superficialmente económica, suavemente política e levemente social



Dona Melancia – Meu bem, não entendo nada disso aí, mas Zé pretende desdizer percentagem de Mário?
Dom Melão desroendo unha – Sim, é isso aí.
Dona Melancia – Meu bem, não entendo nada de estadística, mas percentagem não é desnúmero memo?
Dom Melão cofiando o bigode – Sim, é isso aí.
Dona Melancia – É, benzinho, ‘cê hoje ‘tá baita desextrovertido.
Dom Melão alisando bigode – ‘Cê quer qu’eu fale o quê?
Dona Melancia – Gostava que você dissesse qualquer coisa de desespirituoso. Do género ele é “um órfão da opinião pública, podia dizer-se que (…) [é] um incolor com ideias”*?
Dom Melão – Sim, é isso aí.
Dona Melancia - Xi, benzinho, nós ‘tamo numa d’enriquecimento involuntário, baita desgostoso!
Dom Melão franzindo o bigode – Enriquecimento involuntário?
Dona Melancia – Veja, ontem o Zé desnacionalizou o BPN, hoje desnacionalizou o BPP, quer dizer que somo todo desaccionista. Benzinho – em seu olhar mais inocente - ‘cê podia desinvestir naquele presépio de lata? Vá, não seja unha de fome, ele hoje ‘tá em alta!
Dom Melão erguendo-se do sofá e sussurrando agressividade – ‘Cê pode até achar uma baita d’uma piada, mas eu sou um homem de bem e homem de bem não lhe acha desgraça nenhuma.
Dona Melancia – É, meu bem, a vida política de Zé e companhia ‘tá “(…) cheia de actos falhados que não têm outra intenção senão a de causar aflição aos outros”**.
Dom Melão saiu desvairado do salão, ora num gargalhar, ora num soluçar, ora num aligeirar ornamentado d’inacção.


*BESSA-LUÍS, Agustina (2006). A Ronda da Noite. Lisboa: Guimarães, p. 83.
** Idem, p. 40.

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