sexta-feira, novembro 09, 2007

Maioridade

João Ubaldo Ribeiro, 66 anos, brasileiro, natural de Itaparica, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Wladimir Kaminer, 40 anos, russo, natural de Moscovo, escritor, jornalista, animador de rádio, fundador da Russendisko. Embora vinte e dois anos de vida e um continente apartado pelo Atlântico os separem, estes dois homens partilham entre si, além do labor da escrita, uma mesma cidade. Não há evidência de que alguma vez se tenham encontrado, desconhece-se se algum dia se terão cruzado na Ku´damm ou em qualquer outra rua da urbe mais emblemática do século XX. E, mesmo sem se saber o seu paradeiro durante o longínquo ano de 1990, altura em que ambos partilharam a cidade, Berlim une os dois escritores. Assim conta a história de João Ubaldo Ribeiro, que a convite do DAAD passa quinze meses em Berlim e que a partir da sua vivência na cidade e do confronto com uma realidade que o esperava com todos os estereótipos do brasileiro da Amazónia, escreve um livro delicioso, cheio de humor e peripécias narrando as aventuras desses quinze meses em território germânico. Enquanto isso, Wladimir Kaminer, recém-chegado da Rússia politicamente em escombros e socialmente desvalida, talvez habitando já no Schönhauser Allee, também o título de um dos seus livros iniciais, vive Berlim de forma tão intensa e estranha quanto Ubaldo Ribeiro. O mesmo olhar de fora, crítico, irónico, sarcástico, focado na cidade em pleno processo de mudança, engalanada com todas as cores da liberdade, exuberante na esperançada transmutação.
João Ubaldo Ribeiro regressa ao Brasil, para trás a experiência de Berlim e a rua Storkwinkel, a morada berlinense que admite ter-lhe deixado saudades, e brindou-nos com um belíssimo livro, breve, mas prenhe das impressões de um brasileiro em Berlim e que acabaria por emprestar o título à obra.
Kaminer ficou. Berlim torna-se, entretanto, o cadinho fervilhante de que são feitos quase todos os seus livros. Kaminer assume-se como não berlinense no único livro que dedica abertamente à cidade, Ich bin kein Berliner, a paródia evidente a uma das afirmações mais simbólicas do século passado. A dúvida persiste, no entanto, e para saber fica, se este estatuto de forasteiro serve à escrita, à figura pública do escritor ou ao real sentimento de inadaptação que provou ser um dos ingredientes imprescindíveis e de sucesso nas obras de Kaminer, mais ainda se pensarmos que tem intenções de candidatar-se a Burgomestre da cidade.
E Berlim não é cidade mãe, materna e acolhedora. Não tem regaço nem colo. Não nos canta canções de embalar nos crepúsculos agitados. Berlim é o oposto da mãe: dispersa, áspera, desigual, imensa e indiferente. Em Berlim podemos ser anónimos eternamente, um entre muitos na multidão frenética, multicolor, multicultural, lançados à mercê dos humores da sua altivez e intensidade que congrega a ironia e contradição dos acontecimentos históricos e sociais mais transformadores da Europa do século XX. E duma cidade assim, a história inscrita em cada pedra e a espreitar a cada esquina, só podiam brotar muitos livros, possíveis pela comunhão com a cidade que 9 de Novembro de 1989 permitiu.

foto daqui

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4 Comments:

Blogger Pedro Correia said...

Excelente texto. Como é óbvio, gostei muito.

sexta-feira, novembro 09, 2007 8:08:00 da tarde  
Blogger Flávio said...

Adorei o texto, tanto quanto adoro Berlim. Mas, se me permite, não concordo que a capital alemã seja "o oposto da mãe". É uma mãe austera - como todas as mães alemãs, que cumprimentam os filhos com um aperto de mão - mas nem por isso menos amorosa.

sábado, novembro 10, 2007 11:29:00 da manhã  
Blogger Flávio said...

«Ich bin ein Berliner»

Ninguém me tira da cabeça que o Kennedy morreu por causa desta frase.

sábado, novembro 10, 2007 11:30:00 da manhã  
Blogger LeonorBarros said...

Obrigada, Pedro.

Obrigada, Flávio, acho que tem tudo a ver com a imagem talvez clássica que tenho da mãe. Concordo que é uma cidade austera.

Bom fim-de-semana :-)

sábado, novembro 10, 2007 12:45:00 da tarde  

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