segunda-feira, agosto 27, 2007

Statements of art

Quando Marcel Duchamp se lembrou de usar um urinol e transformá-lo em obra de arte, o mundo reagiu estarrecido e dividiu-se entre ofendidos e seguidores, ultrajados e admiradores, injuriados e idólatras e assim se foi prosseguindo por esse mundo fora. Joseph Beuys também era um rapaz dado a metamorfose dos objectos do quotidiano em obras de arte e Warhol é o exemplo acabado do que pode acontecer a um mera lata de sopa, que lá andava tranquila na sua vidinha. Nada contra. Mas o que me encanita, enfurece e revolta é a quantidade de artistas anónimos que povoam este Portugal de lés a lés e, porque não têm nomes nem amigos, estão votados ao abandono, esquecimento e anonimato, quiçá, morrerão numa valeta entre o betão e a brita. Aqui à porta, por exemplo, assisto a estas manifestações artísticas amiúde.
Tudo começou quando bem à porta de casa me foi plantada uma betoneira em adiantado estado de decomposição, pobrezita, uns buracos aqui e ali, as marcas do cimento e da massa, testemunho indelével das horas infindas de laboração. Nessa altura era fácil indicar aos amigos e visitantes a casa de onde vos teclo estes episódios da vida quotidiana, ao entrarem na rua, a casa é que tem à frente uma betoneira. Assim foi durante uns meses. Depois veio cá o engenheiro, como se sabe os engenheiros não são dados à arte, e ao olhar para o objecto vetusto estrategicamente colocado à porta de casa, viu uma betoneira a cair de velha. Sacou do telemóvel, contactou o autor e, sem qualquer sensibilidade, ordenou a retirada imediata do statement of art. Derramei uma lágrima por trás dos cortinados, enquanto a betoneira era arrastada e afastada para sempre. Tinha ganho afecto ao objecto que de intruso passara a ser decorativo e jamais voltaria a fazer tão boa figura perante os convidados familiarizados com estes meandros e princípios da criação artística.
A partir de então passei a ter de indicar a minha casa pelo número da porta, como o mais comum dos cidadãos, o que neste momento deixou de ter validade, porque agora tenho plantado no jardim um carrinho de mão caduco. Está encostado ao muro, é certo, mais discreto do que a betoneira, mas também tem o seu charme e sempre quebra a monotonia, mas essa, já havia sido quebrada com a cobertura do cerâmico do terraço quando lhe foi sobreposta uma camada espessa de uma gosma elástica, aplicada como o dripping de Pollock mas de uma cor só. E isto é que encanita: tanto artista neste país e porque são apenas Zés ou Maneis pagarão o resto da vida pela sua falta de berço, enquanto semeiam arte nos lares lusos. Não há justiça neste mundo.

imagem: minha
Partilhar

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

porque a deixaste levar?
quem consentiu que da tua parede e do encosto que a sombra lhe dava se apartasse assim esse febril encanto que lhe tinhas?

oh

ingrata mão que empurrou para fora semelhante dolmen urbano!!!

:)))

agora a sério!

porque não reclamaste para ti semelhante objecto? não me digas que foste fulminada pelo comum dos sentimentos humanos... a vontade de se ter só porque agora já não se tem?

bruno b

terça-feira, agosto 28, 2007 12:18:00 da manhã  
Blogger Leonor said...

"Dolmen urbano" é bem ;-)

terça-feira, agosto 28, 2007 2:06:00 da tarde  
Blogger i said...

Deve ter faltado o elemento mais importante da arte contemporânea: a subvenção do instituto de cultura de alguma grande corporação.

terça-feira, agosto 28, 2007 2:32:00 da tarde  

Enviar um comentário

Voltar à Página Inicial