segunda-feira, abril 23, 2007

Até para o ano

Acontece uma vez por ano. Geralmente, perguntam o que significa escrever, uma definição de literatura ou inquirem sobre o gosto pela leitura. Os escritores, os alvos destes interrogatórios anuais, coitados, lá vão ensaiando uma resposta que os torne diferentes entre os demais. Quase sempre com insucesso. Contudo, relembro aqui uma definição saramaguiana do que é ser escritor que, sem ironias, é a minha preferida. Disse-nos então o nosso Nobel que um escritor é alguém que escreve livros. Perfeito.

Hoje é dia do Livro, a paixão literária renasce em cada lar, as instituições promovem o seu “evento evocativo” de tão ilustre data, e os íncolas deste jardim à beira mar plantado tornam-se, repentinamente, num case-study em matéria de leitura. Não só de leitura, mas também de literacia: abrem o livro que o amigo lhes ofereceu pelo Natal e lêem, sublinham e discutem com o parceiro o arrazoado.
Este desejo de leitura, perpetua-se sensivelmente até à meia noite do presente dia, hora a que a fadiga do espírito e a moinha do corpo levam a melhor sobre o encanto das letras. À falta de melhor, e com sorte, daqui por um ano há mais. Além disso, sempre é uma garantia para responder «com regularidade» à pergunta dos inquéritos de rua: «Costuma ler livros?»

O suplemento “P2” do Público traz, inesperadamente hoje, uma reportagem sobre o que vinte escritores disseram sobre o acto de escrever. Entre elucubrações poéticas, («…o poema falou quando eu me calei e se escreveu quando eu parei de escrever» Sophia), declamações de fatalidade («…escrevo porque não o posso evitar.», Marguerite Duras), necessidades eróticas ( «…o único meio de suportar a existência é mergulhar na literatura como numa orgia perpétua», G. Flaubert) ou preocupações de identidade («Escrevo para me identificar comigo próprio, com o meu país e com a minha língua», José Cardoso Pires), o prémio vai uma vez mais para o habitante de Lanzarote (e novamente sem ironia): «Escrevo porque não tenho nada melhor para fazer».


Também totalmente imprevisto foi o livro que hoje aterrou na secretária mesmo ao lado do computador: «Os escritores e a literatura», de Madeleine Chapsal, editora D. Quixote. É um livrinho antigo, tão antigo que nem sequer faz referência à data em que ocorreu a sua primeira publicação. O seu conteúdo é o resultado de uma série de entrevistas que a autora faz a doze grande escritores da actualidade de então (passe o paradoxo). A pergunta base da entrevista é: o que é um escritor. Este livro já deve ter umas boas décadas, mas parece que ainda não saímos do mesmo.


Porém, e quanto mais não seja como homenagem aos escritores que parecem condenados a ter de responder sempre às mesmas perguntas, deixo aqui um punhado (escrevi este texto só para poder utilizar a palavra «punhado») de observações/definições que os escribas fazem do seu ofício. Simone de Beauvoir diz que «o escritor, enquanto tal, nunca faz um trabalho político (…)», e depois passa a entrevista a dissertar dos ideais que estão por detrás dos seus livros e que dois deles são libelos anti-direita. Antoin Blodin acha que escrever é «um sofrimento danado» e fala do prazer imenso que teve na escrita dos seus livros. Graham Greene afirma que escreve para ele próprio mas que ao escrever «tem no espírito um leitor imaginário, que é o leitor ideal [e que esse leitor é] provavelmente hermafrodita e Sartre diz estar cansado de entrevistas literárias que enveredam, invariavelmente, para o campo da filosofia e termina a definir a literatura como «a imagem crítica de si mesmo (…) um espelho critico». Terminamos a viagem a este livro com Céline: «Sou um maníaco do estilo(…) Pede-se muitíssimo a um homem, quando ele não pode muito. A grosseira ilusão do mundo moderno é pedir a um homem (…) que tudo resolva num golpe. Não pode! Um tipo que encontre qualquer coisinha de novo já fez muito (…) já fez para a vida toda.»

Faltam agora breves minutos para o fim do Dia do Livro. Por esses lares portugueses, a cabeça já meneia do esforço de leitura. Chegou a hora de pousar o livro e pensar que amanhã tem de se arranjar mais um bocadinho de tempo, porque, afinal de contas, aquilo nem é tão aborrecido assim. Aborrecido mesmo, são escritores a falar sobre literatura e livros, quando o que sabem fazer melhor é escrevê-los. E é nesta altura, que, depois de levantados do sofá, alguém se lembra que o livro terá de esperar por melhores dias: amanhã é véspera de feriado.
Até para o ano.

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2 Comments:

Blogger cristina said...

«Chegou a hora de pousar o livro e pensar que amanhã tem de se arranjar mais um bocadinho de tempo, porque, afinal de contas, aquilo nem é tão aborrecido assim.»

Que bem! E que bem que isso me assenta... Amanhã, amanhã... Se calhar não... E, bem vistas as coisas, depois também acho que não vai dar... Mas para a semana, vou-me esforçar mais um bocadinho :)

terça-feira, abril 24, 2007 12:02:00 da manhã  
Blogger Carlos Malmoro said...

Estou a escrever «amanhã». Estás a ler? ;)

terça-feira, abril 24, 2007 10:59:00 da tarde  

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