domingo, fevereiro 25, 2007

No direction home

Aquele Fevereiro não foi muito cortês com os visitantes. Frio e dias cinzentos intercalados com umas réstias de sol azul.
Quando saímos do
Guggenheim, já de tarde, caíam uns farrapitos de neve. Alguns dos turistas lusos rejubilaram e eu lá me conformei, sabido é que a neve, tal como o frio, seria liminarmente eliminada da minha existência e do próprio mundo, isto se o criador me tivesse consultado naqueles tais seis dias. Dali até ao hotel distavam ainda alguns quarteirões, muitos, por acaso, nada que não se calcorreasse com satisfação, caso as condições atmosféricas não fossem tão adversas. Quinta Avenida abaixo, por exemplo, e depois umas cortadas à direita e estaríamos no hotel. As cidades querem-se corridas, calcorreadas, sentidas nas solas dos pés, arrastados pelos quilómetros, percorridos na curiosidade de ir sempre mais além, ver mais, sentir mais. Assim é com a cidade que nunca dorme, evidentemente. Mas não naquele dia, outro talvez. Atravessar o Central Park, virar à esquerda e depois seguir em frente seria outra das possibilidades mas não com o friozinho cortante na nuca, o nariz a pingar da humidade, os olhos lacrimejantes do vento e o entardecer a aproximar-se vertiginosamente para envolver o parque na absoluta escuridão. Que fazer então? Apanhar um táxi pois. Então, hail a cab, please e aí vamos nós. Lá me entalei na parte de trás do amarelito e quem de direito saca do seu inglês bem polido, aprendido a preceito, sem mácula, longe do rectângulo lusitano, ausente de sotaque ou entoação que lhe denunciasse a proveniência lusa. Os rs finais indeléveis, quase inaudíveis, os ls enrolados, uma perfeição, em suma. Eu cá por mim, meti logo no saquito dos postais adquiridos no museu onde consegui ver e guardar na alma até hoje cinco guerreiros de terracota numa exposição temporária sobre a China Milenar, o meu humilde inglês, aprendido em terras lusas. E lá fomos rua acima. Era final de tarde e o trânsito acumulava-se nas artérias da Big Apple, caía uma morrinha suave que trazia o crepúsculo anunciado.
O taxista não era rapaz de grandes falas. Não encontrei nunca nenhum em Nova Iorque que o fosse, contrariamente ao fogareiro alfacinha, um rapaz que pode falar pelos cotovelos, regra geral, mal dizendo os outros condutores e o trânsito lisboeta ou a situação política nacional. A noite descia pouco a pouco sobre a cidade. Luzes aqui e ali que se acendiam, o néon ainda mais estridente, os faróis dos automóveis em trânsito mais rubros pelo contraste com o escurecer e o trajecto, que se sabia não tão longe, alongava-se sem explicação, particularmente, na direcção oposta. Não tardaria muito e estaríamos no Harlem, já não tão perigoso aos dias deste episódio mas ainda assim não era, de todo, o nosso destino.
Não, aquilo não estava bem. Um dos ocupantes do yellow cab, também ele um rapaz tido por si próprio como douto nestes linguajares anglófonos, inquiriu o taxista, afinal onde íamos nós? e, uma vez dadas as coordenadas da zona da cidade onde o hotel se situava, no inglês menos sofisticado do segundo douto, o taxista soltou uma expressão de surpresa. Entendera algo diferente da primeira vez. Afinal, não é todos os dias que dentro de um yellow cab em Nova Iorque se podem praticar os numerais ordinais a que as ruas e avenidas nos obrigam, num inglês oxfordiano, directamente saído de uma personagem de uma série britânica, provavelmente um gentleman de stiff upper lip. Soa bem e é bonito, de nada nos servirá, contudo, se ninguém nos entender.
Falar uma mesma língua é também partilhar as linguagens subjacentes a essa mesma língua. Havia alguém dentro daquele táxi que não sabia disto, houve alguém dentro daquele táxi que, sabendo disso, refilou incessantemente pelas voltas desnecessárias e pelo taxímetro bulímico em hora de ponta na cidade que nunca dorme e houve alguém dentro daquele táxi que, entalada no lugar do meio, tudo observou para que a estória pudesse ser contada. Há voltas que nunca são dadas em vão.

imagem: minha
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