terça-feira, janeiro 23, 2007

Garrett, o Bruto

É curiosa a imagem que os alunos vão colhendo dos professores. Na verdade, é frequente a ideia de que o professor apenas sabe ou conhece os conteúdos que lecciona e só domina a área de saberes que estudou. Tudo o resto é um mundo ilustremente desconhecido no universo do professor. É muito divertido, portanto, constatar os olhares de surpresa e admiração, quando se aborda, ainda que superficialmente, um outro assunto da disciplina vizinha. Apenas um comentário ou uma sugestão sobre uma temática da actualidade, um livro ou um poema, um escritor ou um filósofo, podem surtir um efeito surpreendente e transformar um professor num mestre do conhecimento, aos olhos dos alunos.
Assim foi há uma década mal medida. Nesse ano, imediatamente antes da minha aula, tinham Português. Li o sumário da disciplina bem à minha frente no livro de ponto e, ouvindo-os comentar sobre o assunto versado na aula em questão e perante alguma agitação, terei retoricamente perguntado se tinham dado “os Cinco Sentidos” de Almeida Garrett. A pergunta regressou como um boomerang A Setora conhece “Os Cinco Sentidos?!” com um misto de estupefacção e desconfiança. Conheço respondi. Os alunos não se ficaram por ali, particularmente um que se sentava na carteira da frente. Era baixo, tinha o caderno repleto de corações com o nome da namorada e extravasava romantismo e delicadeza, arrebatado pela química que o unia à amada. Via-os com frequência nos braços um do outro, enquanto me deslocava de umas salas para as outras, sempre convictos e enleados, cuidando do seu amor jovem oscilante entre o êxtase e a timidez dos lugares públicos. O questionário continuou E a Setora sabe o que é a relva? referindo-se à carga simbólica e erótica do poema. Sim, sei, respondi de novo. Ele riu-se baixinho com o colega do lado perante a descoberta de que eu afinal sabia mais do que aparentava, algo proibido e interdito e que sim, que o erotismo não me era de todo desconhecido. Continuou E os pomos? A Setora sabe o que são os pomos? Terei rematado algo sobre o erotismo das palavras de Garrett e ele intensificou o sorriso malandro Eh, a Setora sabe o que são os pomos… e continuou rindo baixinho, transparecendo que afinal eu também era uma brejeira devassa, conhecedora que me apresentava do simbolismo carnal da poesia de Garrett. A aula prosseguiu sem nada de novo. Atirada para o esquecimento a brejeirice das palavras do escritor, ali poeta, iniciámos a viagem pelos linguajares germanófonos.
Numa outra aula, talvez imediatamente a seguir, Garrett veio de novo à conversa. Desta vez não houve simbolismos nem meios simbolismos, nada de palavras que queriam dizer mais do que alardeavam significar. Dessa vez, o E. estava indignado. Indignado contra o Garrett e deixou apenas escapar Ele é um bruto! Indaguei porquê dada a invulgaridade do epíteto atribuído ao poeta. Continuou no mesmo tom irritado. Então, setora, acha bem ele dizer uma coisa daquelas à rapariga? Dizer-lhe que não a ama?, numa referência evidente a uma dos mais conhecidos poemas da lírica garrettiana. A verbalização intempestiva do desejo não era característica que se adequasse ao coração transbordante do E., mas vindo desse bruto do Garrett, outra coisa não seria de esperar.
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2 Comments:

Blogger cristina said...

«Apenas um comentário ou uma sugestão sobre uma temática da actualidade, um livro ou um poema, um escritor ou um filósofo, podem surtir um efeito surpreendente e transformar um professor num mestre do conhecimento, aos olhos dos alunos.»

- Concordo/confirmo plenamente =)

terça-feira, janeiro 23, 2007 10:14:00 da tarde  
Blogger LeonorBarros said...

Ainda hoje me aconteceu outra vez mas não com o Garrett.

terça-feira, janeiro 23, 2007 10:54:00 da tarde  

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