terça-feira, dezembro 26, 2006

Não, obrigada!

Através da porta aberta da igreja do cemitério desenhava-se um vulto alto e esguio. Um bigode estrategicamente rectangular e aparado entre o lábio superior e o nariz. Óculos e sobre a batina esbranquiçada um paramento da cor da Paixão de Cristo. Tarde soalheira e amena, em tudo indiferente à partida da D. Silvina, uma vizinha idosa a quem a vida deixou de sorrir nos últimos anos. A senhora da foice deu-lhe finalmente a mão na antevéspera de Natal. A voz do diácono ouvia-se fora das portas da igreja e ecoava sonora na entrada do cemitério estranhamente ensolarado. Cá fora um punhado de homens pouco atentos. O discurso o de sempre; o medo da morte, a salvação, blá, blá, blá, até que sem se entender muito bem porquê, nem sequer como ou vindo de onde, o sermão deu meia volta e a palavra criancinhas também associada ao direito à vida passou a surgir amiúde no discurso monocórdico do representante do divino. Para trás ficou a pobre D. Silvina. Sim, que interessava agora que se estivesse perante a família enlutada num momento particularmente difícil, ainda mais pela proximidade do Natal, festa da família por excelência? Nada, rigorosamente nada. O discurso continuou lampeiro, aparentemente absorto da razão pela qual estavam ali reunidas algumas pessoas. Oportunismo é um nome carregado de conotações negativas, a evitar, portanto, por quem advoga preocupações morais e/ou éticas e religiosas. Pareceu-me, pois, de enorme mau gosto e falta de respeito que o funeral da D. Silvina fosse aproveitado para pôr em marcha mais uma achega contra o aborto. Ver se me lembro de me manter o mais longe possível da Igreja Católica nos próximos meses, nada que me seja particularmente doloroso. Ao que parece, todas as ocasiões serão poucas para passar a palavra: funerais, casamentos, baptizados, crismas e comunhões, nem sei se deva passar à porta da Basílica. Tudo serve. Que o diga o Cardeal Patriarca com as criancinhas em fundo.
Partilhar