domingo, dezembro 17, 2006

Morder um cão

Este post era para ser sobre cães [os meus três cães], mas o Arquitecto Saraiva antecipou-se.

Como tenho uma verdadeira paixão por cães, após um breve apelo à minha memória, evoquei, com facilidade, mais de três dezenas de canídeos que dificilmente poderei esquecer. Deste universo, nem todos foram entes com os quais convivi no meu dia-a-dia. Alguns destes cachorros, cruzaram-se comigo apenas por breves momentos. Porém, inesquecíveis.

A primeira memória que tenho de um canídeo, não é a mais auspiciosa: o bicho era ranhoso, e mordeu-me o nariz. Mas, esse rafeiro manhoso não se ficou a rir: mordi-lhe uma orelha com todas as forças que tinha. Tivemos de ser separados pela dona. Aquilo acabou comigo a berrar para um lado [com um intenso ardor no nariz]; e o rafeirote a ganir e a rosnar para outro [lado].

Um par de anos mais tarde, vinha eu da escola a pé, e assustei-me com o barulho de um carro a travar bruscamente a uma escassa dezena de metros atrás de mim. Ouvi uma pancada seca, seguida de um intenso ganir. Virei-me, e vi um cachorro a rebolar para cima do passeio. Após um breve momento de inacção, comecei a correr para o animal que não parava de ganir intensamente, nem de rodopiar sobre ele próprio. Nessa movimentação desconexa, e antes que eu o conseguisse agarrar, o bicho voltou a entrar na estrada. Foi novamente atropelado [por outro carro que passava], ficando deitado no meio da estrada, inerte, mas com um ganir aflitivo. Agarrei-o pelas patas dianteiras [a única coisa que parecia intacta para além da cabeça], e arrastei-o para o passeio o mais depressa que pude. Lembro-me que comecei a chorar e a gritar por ajuda. Sentei-me no passeio, arrastei-o para o meu colo, e comecei-lhe a fazer festas na cabeça para ver se ele se acalmava e parava com aquele latir perturbador. Acabou por se acalmar, e reduzir o volume do latir para uns pequenos ganires mais espaçados. Como estava perto de casa, recordo que apareceram logo alguns vizinhos, e comerciantes da zona [caras conhecidas], que me quiseram separar do animal em agonia. Mas a forte resistência que lhes dei, obrigou-os a irem chamar os meus pais.

O que mais me marcou, nesses breves minutos a sós com o rafeiro moribundo, foi o olhar [profundamente humano] do animal, e as imensas lágrimas que lhe escorriam pelo focinho. Quando o meu pai chegou, já o animal tinha morrido.

Lembro-me de ir choroso ao colo do meu pai, olhar mais uma vez para o cachorro, e reconhecer a marca [em falta] que o rafeirote tinha na ponta da orelha.
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