domingo, dezembro 24, 2006

Merry Christmas

Esse tempo não chegara ainda. Ela sabia, não obstante, que ele chegaria. Se calmo ou impetuoso desconhecia porém. Sabia apenas que quando chegasse, ela amaldiçoar-se-ia por um dia ter desejado que houvesse saltos no calendário e que, dessa forma, se excluíssem meses, festividades e celebrações que secretamente começava a odiar. Detestava obrigações.
Estava certa que nesse tal tempo vindouro três coisas lhe faltariam: o aroma da canela a espraiar-se pela casa, o sorriso complacente e carinhoso do pai, a euforia infantil e contagiante da mãe. Se mais lhe faltaria não se lhe permitia agora adivinhar. O futuro deve permanecer incerto para que o presente se torne suportável e enquanto esse tempo desenhado no futuro se mantinha distante, repartia os dias numa pacata existência.
No decorrer de todos os Invernos surgia invariavelmente com o desconforto do frio, sem cerimónias nem avisos instalado na alma, uma data incontornável no calendário cristão. Em criança agradara-lhe a data. Os dias eram contados com esmero e ansiedade. O dia propriamente dito quando chegava era tão desejado que mal se podia fazer esperar e todos os minutos e horas pareciam eternidades que se prolongavam impiedosamente. Tudo isto lugares-comuns, tão comuns e banais como a própria existência. Questionava-se se, caso na sua vida não habitassem todos estes lugares-comuns revestidos da menor importância para o decurso da humanidade, a própria vida teria sentido. Esperando um momento de excelência acima do comum dos mortais arriscava-se a ver a vida passar a seu lado, passear-se ali mesmo rapioqueira e displicente., enquanto ela permanecia estática no cais de embarque. A vida sorridente acenar-lhe-ia da janela do comboio em movimento. Mais uma despedida, portanto.
No início daquele Inverno decidiu que talvez pudesse ser diferente e, por assim ser, povoando-lhe a mente o sonho de que noutras paragens seria decerto outro o sentir e fazer da data comemorativa, fez as malas e partiu à descoberta. Na alma a curiosidade e o desejo desse Natal que ao longo da vida lhe parecera mais autêntico, mais genuíno e espiritual: o Natal dos cânticos, das crianças de gorros e luvas, os tons de verde e vermelho dominantes com uns salpicos de dourado e uns farrapos de neve alva nos cocurutos das casas e das árvores altaneiras, o Natal soturno e acolhedor ao jeito do Velho Continente, o Natal de Dickens decididamente, iluminado com velas e candeias seguras por pequenas mãos enluvadas contra a inclemência do Inverno, cantado um uníssono por vozes imberbes.
Acordou na capital britânica leve e renovada. Para trás, as obrigações e responsabilidades, as contas do mês e as compras do supermercado, os detergentes e branqueadores, o papel higiénico e os guardanapos. Saiu para a rua despreocupada, talvez feliz. Consigo, além do companheiro de viagens e de vida, apenas o júbilo dos irresponsáveis. Havia gente, gente e mais gente. Turistas de cores e linguajares diferenciados coloriam as ruas, preenchiam os mercados como um imenso pontilhado numa tela, povoavam os parques desnudados como uma pincelada mais brilhante contra o cinzento pastoso, assombravam os cantos mais recônditos da cidade, deixando-a desvelada perante os olhares perscrutadores, privada da sua própria intimidade. Uns carregavam sacos, quase todos apressados e de passo estugado, outros detinham-se em frente dos monumentos e, esboçando um sorriso ou articulando uma pose consentânea com a ocasião, deixavam-se fotografar para na posteridade recordar tais dias, talvez, ou exibir, num tempo mais imediato e próximo, no escritório a colegas e conhecidos como atestado da incursão à velha Albion. A imensa mole humana avançava como uma torrente para as lojas, cuja música, entrecortada pelo o barulho persistente da máquina registadora, se esvaía no turbilhão de vendilhões. Depressa concluiu que o Natal dos livros que lera era mais belo do que o que se pavoneava na sua frente e a arrastava a espaços numa enxurrada de compras, sacos e pacotes, lembranças e presentes. O aroma da canela a espraiar-se pela casa, o sorriso complacente e carinhoso do pai, a euforia infantil e contagiante da mãe surgiram-lhe na memória. Confirmou que dessas sentiria falta um dia.
E foi assim que, numa encruzilhada, alguém vindo não se sabe de onde, os abordou. Era um homem magro de feições vincadas e rosto longo. Trazia no semblante um sorriso aberto e nos gestos um desembaraço gingão. Destacava-se no meio da multidão. Era alto ainda que algo curvo, carcomido pelo tempo decerto, talvez por um tempo incerto. As vestes pardacentas repeliram-na instintivamente. Não se mostrou incomodado. Permaneceu imperturbável, aparentando nada lhe afectar a manifesta falta de à-vontade dela. Aproximou-se mais, afável. Ambos pararam expectantes. Ao que viria permanecia um mistério. Abeirou-se do rapaz e pediu-lhe um cigarro no seu linguajar anglófono. De seguida aconchegou-se na rapariga e, quase segredando-lhe ao ouvido, proferiu algo que até hoje não se deixou divulgar. Ela sorriu algo tímida, ruborizando levemente em sintonia com a cor do casaco que envergava. O rapaz a seu lado assistia complacente. Pegou então na mão enluvada da rapariga e colocou-lhe um beijo dedicado mesmo na palma da mão, fechando-a carinhosamente de seguida. Despediu-se do rapaz. Agarrou-o, deu-lhe um abraço vigoroso como só os homens sabem fazer e, enquanto se afastava ligeiro, escapando-se entre a diabólica multidão, soltou um Merry Christmas! Feliz Natal então.

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