quarta-feira, setembro 13, 2006

Avante camarada!

Como tinha 16 anos e vinha de uma família anti-salazarista, eu queria salvar o mundo. Quando se tem essa idade, das duas uma: ou se quer salvar o mundo, confrontando-o, ou se confronta o mundo para nos afirmarmos. Eu talvez quisesse as duas coisas - porque este "ou... ou..." é redutor. E, assim, recém-chegado a Lisboa e ao deslumbramento do contacto com outros jovens bem mais avançados no caminho da salvação, lancei-me nas lutas académicas (um misto de descoberta das artes, da política e de tudo o que era proibido). Como tinha alma de guerreiro, fui notado e, pouco tempo depois, estava no Partido Comunista. Eu não sabia quase nada de marxismo-leninismo, soletrava umas frases-chavão apenas, mas continuava querendo salvar o mundo. Entrei no PCP para atingir o paraíso. Com o sacrifício da minha própria liberdade, se fosse caso disso.

Meu avô paterno, um militar que passara grande parte da sua vida preso por ter a mania de estar em muitas das tentativas de revolta contra Salazar, ficou feliz. De cada vez que eu chegava a casa, após participar em mais uma pequena luta académica antiditadura, interrogava-me ao detalhe, deliciava-se com a actividade "corajosa" do neto e insultava Salazar. Esta passagem para o lado "revolucionário", de resto, fizera-o reconciliar-se comigo. Como anti-salazarista de gema e ateu convicto (também era maçon), não me perdoara ser, aos 14/15 anos, membro da Mocidade Portuguesa, a MP, organização de juventude do Estado Novo, e ter tido uma educação católica. Quando vim estudar para Lisboa e entrei nas lutas académicas e, depois, no PCP, ele recuperou o orgulho no neto. Ainda por cima, eu aderira a uma nova igreja, deixara de crer nessa coisa do Deus dos católicos e trocara a visão do paraíso, depois da vida, pela luta pelo paraíso em vida. Se havia já milhões de pessoas que lá viviam, porque não nós? Bastava deitar fora o dr. Salazar e trocá-lo pelo dr. Cunhal. Como era tudo uma questão de dogma e eu nunca visitara o paraíso do catolicismo nem o paraíso comunista, achei que lutar pelo que estava mais perto era mais compensador.

Tinha 17 anos. Rebeldes. Adorava fazer perguntas, algo que muitos dos meus controleiros do PCP nem sempre apreciavam. Quando subi um pouco na hierarquia da organização académica do partido, essa tendência pequeno- -burguesa foi-se acentuando. "Porque é que a rádio do partido diz ter havido milhares de pessoas na manifestação do Rossio, se só lá estavam dezenas? Porque dizemos mentiras?", perguntava eu, crendo que, numa igreja ou noutra, mentir era sempre ruim. "Porque é preciso mobilizar as pessoas, dar-lhes fé na luta, e quem nos escuta não está aqui para verificar." Era uma resposta. "Porque é que escrevemos que o fascismo é tão mau que até o pontão do porto do Funchal tem buracos, por incompetência na construção, se eles afinal são necessários para escoar a pressão do ar provocada pelo movimento das águas?" Sem resposta. "Porque entraram os tanques soviéticos em Praga para esmagar os contra-revolucionários, se o povo está na rua defendendo as mudanças do 'seu' partido comunista?" Resposta longa, cassete e olhar desconfiado.

Pergunta a pergunta, resposta a resposta ou não resposta a não resposta, descobri que aquele caminho para o paraíso era, afinal, muito duvidoso. O que ia conhecendo dele não parecia melhor que o que não conhecia do outro. Ao menos, o outro situava-se na eternidade - ao lado do inferno, é certo, mas diverso dele. E não havia notícia de tanques esmagando os anseios de liberdade das pessoas, nem hospitais psiquiátricos para dissidentes, nem... E assim deixei de ser comunista, continuando a ser antifascista e a odiar o sr. Hitler. Mais tarde aprendi que o sr. Hitler não era pior que o sr. Estaline ou o sr. Mao. Aprendi, também, depois do 25 de Abril, que os anti-salazaristas que odeiam o dr. Salazar, mas desculpam ou "esquecem" os crimes de Estaline e de Mao, são "democratas".
José Manuel Barroso (bolds meus) no Diário de Notícias

Eu adoro (efectivamente) citar.
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1 Comments:

Blogger Nancy Brown said...

Ainda bem q andas por aqui pois assim proporcionas a leitura de textos como estes, gostei essencialmente da escrita desempoeirada de José Manuel Barroso. Uma pequena correcção histórica: o cristianismo tb carrega às costas as suas vítimas e isso não pode ser esquecido. Mas tudo o resto é de uma abertura de espírito exemplar.

quarta-feira, setembro 13, 2006 8:35:00 da manhã  

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