quarta-feira, agosto 16, 2006

e a história da canção, infelizmente, repete-se e repete-se...

[...]
A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p'ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
"às suas ordens, meu tenente!"
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato
[...]
Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem sem preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança chamas
estás são e salvo e logo
"viver é bom" proclamas

Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: "eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!"
No fogo assim te estreias.
[...]
Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila

O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terramotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, ah, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?
[...]
Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nessa morada...

Sérgio Godinho, "Fotos do fogo" (1993)

Eu hoje vou deixar que o artista fale...
«Para mim é uma canção que me deu muito trabalho; ao mesmo tempo, foi gratificante fazê-la. A guerra tem de ser denunciada com veemência, labor e de uma forma eficaz. Há muitas canções em que sinto que fiquei aquém do meu propósito, nesta sei que o levei até ao fim. Fechei o "Tinta Permanente" com ela, cantei-a muito na altura e, mesmo que as guerras acabem todas, terá de continuar a ser cantada para fazer a chamada paz preventiva, essa sim, uma boa noção...»
Sérgio Godinho transcrito por Nuno Galopim, in "Retrovisor" (2006) p.181.
[O título do post também é uma citação de SG no mesmo livro, p.133.]
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