um herói da classe operária
nunca tive vontade em ser ninguém especial, para mim, as pessoas especiais eram apenas as pessoas comuns, sempre gostei de as observar, mais às suas vidas, infantis, adolescentes, encruadas.
também descobri a sua estranha capacidade de criarem filhos, ainda não tendo crescido o suficiente, curioso viver-se rodeado de crianças adultos e adultos crianças.
adultos crianças dando ordens e refilando com a não compostura dos pais e crianças adultos rebelando-se contra a desordem da realidade.
os adultos crianças querendo ensinar o bebam à vossa saúde e as crianças adultos trabalhando afincadamente por um futuro menos igual.
era uma luta incessante, um incenso de luta.
mas ambos cresciam, desfasados da realidade, e ambos, euforicamente, rumo ao vazio em espiral.
aos dezoito anos, fartos do nada, partiam em busca de toda a liberdade possível, tornada apetecível por meia dúzia de patacas, riam amiudadamente, da parvoeira dos lugares comuns,
afinal trabalho infantil é apenas e só uma regalia dos não indigentes, esses gajos das cidades que não vivem a vida que se percebe. badanas, madames alcoforadas, é só.
o ingresso na vida activa, cheio de veemência e desafogo e um peugeot 106 poupado, apto a viver uma vida nas curvas e contra curvas, das miúdas,
por isso ainda gostaria de andar na escola, era mais fácil, tudo era mais fácil.
um carro e um gajo kitado, as rodas chiando nas curvas e no alcatrão e a miúda de ocasião, guinchando, amedrontada, os dedos, as pernas esguias, as ancas, o conforto dos seus olhos, os seios, por cima da blusa e o seu automóvel, magnífico, kitado.
a miúda desfalecia e ele e as mãos, e as curvas das miúdas.
depois do fim de semana animado, voltava alegre e satisfeito à sua liberdade e partia em busca do seu futuro, herói da classe operária, sem ideologia.
naquele dia contara esmiuçadamente o seu objectivo, 2500 luvas, encaixotara 2500 luvas.
a partir dali, ultrapassara sempre, diariamente, a sua meta e descobrira quão triste seria, trabalhar sem objectivos.
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