sábado, maio 20, 2006

Désir

Na Introdução a Memórias de Alegria, antologia de verso e prosa sobre Coimbra, diz Eugénio de Andrade:

Foi ele que me levou a ler o Oliveira Martins. Tens de lê-lo também: o primeiro encontro com este homem é uma fascinação. Começa pelas páginas sobre o duque de Coimbra; são lindíssimas. O Oliveira Martins tem um fraco por D. Pedro; eu também. Sabes qual era a divisa dele? Desyr. Uma só palavra, que naquele tempo, quando se não era nobre, conviria dizer em voz baixa, atravessou noites e noites da mais espessa retórica para ser agora a razão mesma, ou o poema, da nossa juventude: Désir. À mon seul désir… Não conheces o juramento que fizeram, ele e o conde de Avranches, ali na Igreja de Sant’Iago? «Conde, sabei que eu sinto já a minha alma aborrecida de viver neste corpo, e desejosa de se sair de suas paixões e tristezas. Pois que as coisas me não obedecem, determino morrer e acabar inteiro, e não em pedaços. Pela criação que vos fiz, pela irmandade que comigo mereceste ter na santa e honrada Ordem da Jarreteira, e principalmente pela vossa bondade e esforço, quero saber se no dia em que deste mundo me partir, quereis também ser meu companheiro?»* Sabes o que respondeu o conde? «Sou muito contente ter-vos essa companhia na morte, assim como vo-la tive na vida; e se Deus ordenar que do mundo vossa alma se parta, sede certo que a minha seguirá logo a vossa; e se as almas no outro mundo podem receber serviço umas das outras, a minha nesse dia irá acompanhar e servir para sempre a vossa…»*. Só em Shakespeare é que há coisas assim, não é verdade, David? (…) Quanto ao infante D. Pedro e ao Álvaro Vaz convenhamos que mesmo entre gente de Cavalaria não são frequentes mortes assim: - «Ó corpo, já sinto que não podes mais e tu minha alma já tardas…»*.

* Passagens da Crónica de D. Afonso V, de Rui de Pina


Alfarrobeira foi a 20 de Maio de 1449.
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1 Comments:

Blogger norma said...

O infante era um poeta... ou será que a voz enunciadora é a do Rui de Pina ou outro alguém que se esconde palimpsesticamente nos seus escritos?

De qualquer modo, basta a sua divisa para se perceber a profundidade e a estatura daquele homem. Mesmo que tenha tentado arrebatar o poder.

domingo, maio 21, 2006 4:03:00 da tarde  

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