terça-feira, março 21, 2006

Dia mundial da Poesia

BEIJOS

Monólogo

«Beijar!», linda palavra!... Um verbo regular
que é muito irregular
nos tempos e nos modos…

conheço tanto beijo e tão diferentes todos!...

um beijo pode ser amor ou amizade
ou mera cortesia,
e muita vez até, dizê-lo é crueldade,
é só hipocrisia.

O doce beijo de mãe
É o mais nobre dos beijos,
Não é beijo de desejos,
Valor maior ele tem:
É o beijo cuja fragrância
Nos faz secar na infância
Muita lágrima… feliz;
Na vida esse beijo puro
É o refúgio seguro
Onde é feliz o infeliz.

Entre as damas o beijo é praxe estabelecida,
Cumprimento banal – ridículos da vida! - :

(Imitando o encontro de duas senhoras na rua)
- Como passou, está bem? (Um beijo.) O seu marido?
(Mais beijos.) – de saúde. E o seu, Dona Mafalda?
- Agora, menos mal. Faz um calor que escalda,
não acha? – Ai, Jesus!, que tempo aborrecido!...

beijos dados assim, já um poeta o disse,
beijos perdidos são.
(Perder beijos!, que tolice!
Porque é que a mim os não dão?)

O osculum pacis dos cardeais
É outro beijo de civilidade;
Beijos paternos ou fraternais
São castos beijos, só amizade.

As flores também se beijam
Em beijos incandescidos,
Muito embora se não vejam
Os ternos beijos das flores.

Há outros beijos perdidos:
Aqui mesmo,
Há aqueles que os actores
Dão a esmo,
Dão a esmo e a granel…
Porque lhes marca o papel.

- Mas o beijo d’amor?
Sossegue o espectador,
Não fica no tinteiro;
Guardei-o para o fim por ser o «verdadeiro».

Com ele agora arremeto
E como é o principal,
Vai apanhar um soneto
Magistral:

Um beijo d’amor é delicioso instante
Que vale muito mais do que um milhão de vidas,
É bálsamo que sara as mais cruéis feridas,
É turbilhão de fogo, é espasmo delirante!

Não é um beijo puro. É beijo estenteante,
Pecado que abre o céu às almas doloridas.
Ah! Como é bom pecar com bocas confundidas
Num desejo brutal de carne palpitante!

Os lábios sensuais de uma mulher amada
Dão vida e dão calor. É vida desgraçada
A do feliz que nunca um beijo neles deu;

É vida venturosa a vida de tortura
Daquele que coa boca unida à boca impura
Da sua amante querida, amou, penou, morreu.

(Pausa – Mudando de tom)

Desejava terminar
A beijar a minha amada
Mas como não tenho amada,

(A uma espectadora)

Vossência é que vai pagar…
Não se zangue a sua face
Consinte que eu vá beijar…
……………(atira-lhe um beijo)
um beijo pede e dá-se,
não vale a pena corar…

Mário de Sá-Carneiro, Obra Poética
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