O nacional-porreirismo
Hoje, quando quase todos estão a escrever, ou escreveram, sobre o tão aguardado anúncio da candidatura de Cavaco Silva à Presidência da República, eu optei por um tema mais mundano. Mais mundano, mas, apesar disso – ou por causa disso –, mais urgente. Porque determina o pensamento e a acção do sujeito no seu quotidiano. Sempre, não só hoje.
Um dos problemas mais evidentes na sociedade portuguesa é a falta de discernimento de grande parte dos seus membros. E como se sabe que esse discernimento não abunda, não se deve esperar que, num posto de abastecimento de combustível qualquer, se dê a feliz coincidência de estar presente na totalidade dos funcionários que aí trabalham. Mas podia acontecer. Podia.
Bem, passo a explicar: esta tarde fui comprar a revista Visão à bomba de gasolina onde costumo ir abastecer o carro. Quando chegou a minha vez de pagar, pousei a revista em cima do balcão e a empregada perguntou «É só?», ao que acenei que sim. Não se mostrando satisfeita, ela insistiu com um «É só isto?», e eu respondi, menos satisfeito também, devido à insistência: «Não vê aí mais nada para pagar, pois não?» O que fui dizer… A senhora ficou ofendidíssima. Começou por dizer que «só» perguntou. Eu respondi-lhe que «só» respondi. Continuou, afirmando que não tinha culpa de eu estar maldisposto. E eu, um pouco incrédulo, resolvi desistir de tal desconversa. Mas eis que entra em cena um segurança dizendo que podia haver combustível para pagar, daí a insistência da funcionária. Retorqui que se assim fosse eu teria dito. E que, de qualquer maneira, já havia respondido. Prosseguiu, perguntando-me: «Por que é que você é sempre assim?» E a minha incredulidade inicial aumentou. «Como?!...», questionei. «Há algum tempo atrás você fez o mesmo: foi mal-educado com a rapariga que estava a atender!», exclamou o segurança. Recordei-me então que, de facto, «há algum tempo atrás» enquanto esperava para pagar a gasolina com que tinha abastecido o carro, me irritei com o que sucedia: estavam duas empregadas atrás do balcão, eu à frente, e mais ninguém para atender. Uma delas arrumava tabaco nas prateleiras e a outra nunca consegui perceber o que fazia. Esperei que me atendessem. Elas continuaram: uma a arrumar tabaco e a outra a fazer não-sei-o-quê. Eu, invisível, continuei à espera. Elas continuaram a fazer o mesmo. Até que resolvi perguntar se queriam receber o dinheiro do combustível ou se me ia embora. A empregada que estava a fazer não-sei-o-quê, atrapalhada, pediu ajuda à outra. E a outra resolveu atender-me e recebeu o pagamento. Foi tudo. Pensava eu, ou melhor, nem nunca mais pensei. Até hoje, quando o segurança me lembrou da ocorrência. Todavia, o equivalente ao que ele tem de boa memória falta-lhe em bom senso. Porque, ao contrário daquilo de que me acusou, nem nesse dia fui mal-educado nem hoje o fui. Ainda tentei que ele tivesse abertura de espírito para entender que, apesar de eu não ter sido simpático – e admito que não fui, não tinha que ser; aliás, sou menos frequentemente simpático do que empático –, não significava que tivesse sido mal-educado. Foi em vão. Acrescentou que se fosse a funcionária a proceder como eu, eu ia achar que ela era mal-educada. Escusei-me, então, de tentar explicar-lhe que apenas eu, e só eu, é que sei o que acho sobre o que quer que seja; que não pensamos todos do mesmo modo; que não valorizamos todos as mesmas coisas; que para mim é muito mais importante a competência profissional do que a simpatia – apesar de que se ela vier junto, melhor; que, em todo o caso, se alguém tinha de ser simpático, seria a funcionária da gasolineira porque trabalha no atendimento ao público. Assim, vim-me embora, ficando ele com a convicção inabalável de que era dono da verdade e eu com a fama de ser mal-educado. De tê-lo sido sempre, nas centenas de vezes que já lá fui porque… sou «sempre assim». E como me vim embora fiquei sem saber como é que, na opinião deste segurança, devo ser daqui em diante.
Razão parece ter o meu amigo André, quando escreve no seu post Sejam bem-vindos meus irmãos!, que os brasileiros que trabalham em Portugal são melhores profissionais nas actividades que exercem, de atendimento ao público, do que eram os portugueses que antes as exerciam. E que a estes portugueses melhor lhes assentam as funções de segurança. Sobre os brasileiros em questão, não sei, ainda que me pareça que ele tenha razão; porém, sobre os portugueses em causa, tem-na, indubitavelmente.
O que me aconteceu hoje é apenas um exemplo menor do que se passa diariamente na sociedade portuguesa. Comigo e com outras pessoas. Mas o exemplo não passa disso mesmo e, como tal, não importa. O que verdadeiramente interessa é a dimensão de uma realidade mais ampla, que transcenda em muito a do exemplo. Vivemos num tempo em que, se não aceitarmos com um sorriso estúpido no rosto a estupidez de muitas das pessoas que se cruzam no nosso caminho, somos «mal-educados», estamos «maldispostos», julgamo-nos «melhor do que os outros», somos «elitistas», «racistas», «comunistas» para uns, «fascistas» para outros.
Que melhor seria esta sociedade se as pessoas que apressadamente tiram estas conclusões, sem o mínimo de reflexão, dedicassem uns ínfimos segundos e alguns dos seus neurónios a essa tarefa cada vez mais rara.
Lembro-me, a propósito – outro exemplo apenas –, de José Mourinho. Há uns anos, quando começou a trabalhar como treinador de futebol e a obter sucessivamente bons resultados, houve logo uma série de vozes que se levantaram para o acusar de ser arrogante. A isso, eu – que embora não perceba de jogos de bola percebo de jogos humanos –, respondia que não achava que ele fosse arrogante, antes que era um profissional competente que não andava por aí a dar palmadinhas nas costas ou a dizer por «meias palavras» aquilo que pode – e deve – ser dito com as palavras inteiras. (Aliás, esta questão da linguagem revela uma certa falta de força e determinação dos Portugueses. Falta de força, através da utilização dos ‘inhos’: coisinhos, favorezinhos, amiguinhos e outros. Falta de determinação, devido ao uso das formas verbais gostaria, poderia, queria em vez de gosto, posso, quero – acompanhados, isso sim, do respectivo «por favor» – é que sou pouco simpático, mas não mais do que isso…)
Um outro exemplo que me ocorre, mais recente, é o do famoso debate televisivo entre Manuel Maria Carrilho e Carmona Rodrigues, durante a última campanha autárquica. No final do debate, o primeiro recusou-se a cumprimentar o segundo. Atenção: não faço nenhum juízo de valor sobre a razão de um ou de outro. Mas se Carrilho se sentiu ofendido, por que raio havia de cumprimentar o adversário? Por ser politicamente correcto? Socialmente bem visto? Só se fosse por estratégia política, pois a partir daí foi ver as sondagens a mostrarem a diminuição da intenção de voto no antigo ministro da Cultura e o aumento da mesma a favor do actual presidente da câmara lisboeta. O motivo não foi o conteúdo programático da candidatura de um ou de outro – que a maioria das pessoas nem devia conhecer. Não foi a competência de um ou do outro – que à grande maioria delas não parecia interessar. Não, nada disso. Foi, tão-somente, a falta do aperto de mão acompanhado do respectivo sorriso cínico. Foi a ausência das palmadinhas nas costas. Foi a inexistência do típico nacional-porreirismo.
A cada dia que passa, a maioria da população portuguesa vai preferindo o óbvio da forma à análise do conteúdo. A facilidade do evidente em detrimento da dificuldade do menos evidente. Em quase tudo e a quase todo o momento. Mesmo que isso nos conduza ao vazio.
É por sermos como somos que temos o país que temos. Afinal, se calhar, aquele que merecemos.
Um dos problemas mais evidentes na sociedade portuguesa é a falta de discernimento de grande parte dos seus membros. E como se sabe que esse discernimento não abunda, não se deve esperar que, num posto de abastecimento de combustível qualquer, se dê a feliz coincidência de estar presente na totalidade dos funcionários que aí trabalham. Mas podia acontecer. Podia.
Bem, passo a explicar: esta tarde fui comprar a revista Visão à bomba de gasolina onde costumo ir abastecer o carro. Quando chegou a minha vez de pagar, pousei a revista em cima do balcão e a empregada perguntou «É só?», ao que acenei que sim. Não se mostrando satisfeita, ela insistiu com um «É só isto?», e eu respondi, menos satisfeito também, devido à insistência: «Não vê aí mais nada para pagar, pois não?» O que fui dizer… A senhora ficou ofendidíssima. Começou por dizer que «só» perguntou. Eu respondi-lhe que «só» respondi. Continuou, afirmando que não tinha culpa de eu estar maldisposto. E eu, um pouco incrédulo, resolvi desistir de tal desconversa. Mas eis que entra em cena um segurança dizendo que podia haver combustível para pagar, daí a insistência da funcionária. Retorqui que se assim fosse eu teria dito. E que, de qualquer maneira, já havia respondido. Prosseguiu, perguntando-me: «Por que é que você é sempre assim?» E a minha incredulidade inicial aumentou. «Como?!...», questionei. «Há algum tempo atrás você fez o mesmo: foi mal-educado com a rapariga que estava a atender!», exclamou o segurança. Recordei-me então que, de facto, «há algum tempo atrás» enquanto esperava para pagar a gasolina com que tinha abastecido o carro, me irritei com o que sucedia: estavam duas empregadas atrás do balcão, eu à frente, e mais ninguém para atender. Uma delas arrumava tabaco nas prateleiras e a outra nunca consegui perceber o que fazia. Esperei que me atendessem. Elas continuaram: uma a arrumar tabaco e a outra a fazer não-sei-o-quê. Eu, invisível, continuei à espera. Elas continuaram a fazer o mesmo. Até que resolvi perguntar se queriam receber o dinheiro do combustível ou se me ia embora. A empregada que estava a fazer não-sei-o-quê, atrapalhada, pediu ajuda à outra. E a outra resolveu atender-me e recebeu o pagamento. Foi tudo. Pensava eu, ou melhor, nem nunca mais pensei. Até hoje, quando o segurança me lembrou da ocorrência. Todavia, o equivalente ao que ele tem de boa memória falta-lhe em bom senso. Porque, ao contrário daquilo de que me acusou, nem nesse dia fui mal-educado nem hoje o fui. Ainda tentei que ele tivesse abertura de espírito para entender que, apesar de eu não ter sido simpático – e admito que não fui, não tinha que ser; aliás, sou menos frequentemente simpático do que empático –, não significava que tivesse sido mal-educado. Foi em vão. Acrescentou que se fosse a funcionária a proceder como eu, eu ia achar que ela era mal-educada. Escusei-me, então, de tentar explicar-lhe que apenas eu, e só eu, é que sei o que acho sobre o que quer que seja; que não pensamos todos do mesmo modo; que não valorizamos todos as mesmas coisas; que para mim é muito mais importante a competência profissional do que a simpatia – apesar de que se ela vier junto, melhor; que, em todo o caso, se alguém tinha de ser simpático, seria a funcionária da gasolineira porque trabalha no atendimento ao público. Assim, vim-me embora, ficando ele com a convicção inabalável de que era dono da verdade e eu com a fama de ser mal-educado. De tê-lo sido sempre, nas centenas de vezes que já lá fui porque… sou «sempre assim». E como me vim embora fiquei sem saber como é que, na opinião deste segurança, devo ser daqui em diante.
Razão parece ter o meu amigo André, quando escreve no seu post Sejam bem-vindos meus irmãos!, que os brasileiros que trabalham em Portugal são melhores profissionais nas actividades que exercem, de atendimento ao público, do que eram os portugueses que antes as exerciam. E que a estes portugueses melhor lhes assentam as funções de segurança. Sobre os brasileiros em questão, não sei, ainda que me pareça que ele tenha razão; porém, sobre os portugueses em causa, tem-na, indubitavelmente.
O que me aconteceu hoje é apenas um exemplo menor do que se passa diariamente na sociedade portuguesa. Comigo e com outras pessoas. Mas o exemplo não passa disso mesmo e, como tal, não importa. O que verdadeiramente interessa é a dimensão de uma realidade mais ampla, que transcenda em muito a do exemplo. Vivemos num tempo em que, se não aceitarmos com um sorriso estúpido no rosto a estupidez de muitas das pessoas que se cruzam no nosso caminho, somos «mal-educados», estamos «maldispostos», julgamo-nos «melhor do que os outros», somos «elitistas», «racistas», «comunistas» para uns, «fascistas» para outros.
Que melhor seria esta sociedade se as pessoas que apressadamente tiram estas conclusões, sem o mínimo de reflexão, dedicassem uns ínfimos segundos e alguns dos seus neurónios a essa tarefa cada vez mais rara.
Lembro-me, a propósito – outro exemplo apenas –, de José Mourinho. Há uns anos, quando começou a trabalhar como treinador de futebol e a obter sucessivamente bons resultados, houve logo uma série de vozes que se levantaram para o acusar de ser arrogante. A isso, eu – que embora não perceba de jogos de bola percebo de jogos humanos –, respondia que não achava que ele fosse arrogante, antes que era um profissional competente que não andava por aí a dar palmadinhas nas costas ou a dizer por «meias palavras» aquilo que pode – e deve – ser dito com as palavras inteiras. (Aliás, esta questão da linguagem revela uma certa falta de força e determinação dos Portugueses. Falta de força, através da utilização dos ‘inhos’: coisinhos, favorezinhos, amiguinhos e outros. Falta de determinação, devido ao uso das formas verbais gostaria, poderia, queria em vez de gosto, posso, quero – acompanhados, isso sim, do respectivo «por favor» – é que sou pouco simpático, mas não mais do que isso…)
Um outro exemplo que me ocorre, mais recente, é o do famoso debate televisivo entre Manuel Maria Carrilho e Carmona Rodrigues, durante a última campanha autárquica. No final do debate, o primeiro recusou-se a cumprimentar o segundo. Atenção: não faço nenhum juízo de valor sobre a razão de um ou de outro. Mas se Carrilho se sentiu ofendido, por que raio havia de cumprimentar o adversário? Por ser politicamente correcto? Socialmente bem visto? Só se fosse por estratégia política, pois a partir daí foi ver as sondagens a mostrarem a diminuição da intenção de voto no antigo ministro da Cultura e o aumento da mesma a favor do actual presidente da câmara lisboeta. O motivo não foi o conteúdo programático da candidatura de um ou de outro – que a maioria das pessoas nem devia conhecer. Não foi a competência de um ou do outro – que à grande maioria delas não parecia interessar. Não, nada disso. Foi, tão-somente, a falta do aperto de mão acompanhado do respectivo sorriso cínico. Foi a ausência das palmadinhas nas costas. Foi a inexistência do típico nacional-porreirismo.
A cada dia que passa, a maioria da população portuguesa vai preferindo o óbvio da forma à análise do conteúdo. A facilidade do evidente em detrimento da dificuldade do menos evidente. Em quase tudo e a quase todo o momento. Mesmo que isso nos conduza ao vazio.
É por sermos como somos que temos o país que temos. Afinal, se calhar, aquele que merecemos.
6 Comments:
que o spam não leve ninguém ao desespero. até porque há comentários mais desesperantes que o desespero do spam.
bom texto, paulo, polaroid de um quotidiano em lisboa. a incompetência ofende-se sempre, está aí a graça. e um gajo, para além de iletrado, passa sempre por mal-educado.
os restaurantes, cafés, padarias, bares,repartição de finanças, correios e o resto, tudo... encher as estações de serviço de brasileiros oi?hein? não será solução.
qual será a solução? que fazer a esta gente que respira incompetência?
Se fosse comigo nunca mais lá punha os pés. Ia sempre abastecer noutro lado.
Paulo, devo admitir que não tenho essa frontalidade e esses testículos. Parabéns. Invejo-te a frontalidade (não os testículos) e fico entusiasmado com a ideia de que, afinal, não temos que engolir sapos todos os dias.
Infelizmente o atendimento ao público em Portugal é assim.
Queixo-me frequentemente de situações semelhantes mas as coisas não parecem melhorar. Mesmo assim, o nacional-porreirismo é bem mais hospitaleiro que a nacional-prepotência espanhola!
Grande discurso e grande bofetada nos seus críticos mais jovens, o de Mário Soares na apresentação da sua candidatura, um espírito jovem com 81 anos.
Aquela que ele lembrou que esteve numa manifestação na rua contra a guerra do Iraque vai levá-lo à vitória.
O povo tem memória e na campanha Soares vai perguntar muitas vezes a Cavaco onde estava nessa altura. Estaria com Durão Barroso, o delfim de Cavaco Silva? Estaria na cimeira dos Açores, com o seu delfim Durão Barroso? Fez Cavaco Silva alguma coisa para evitar o desastre de Bush e de Durão Barroso nos tempos que antecederam a guerra do Iraque?
Suponhamos que nessa altura Cavaco Silva era presidente da República. O que teria ele feito, iria receber Bush nos Açores e dar o aval de Portugal ao disparate que foi a guerra do Iraque? O que teríamos em troca desse apoio a Bush? Provavelmente o que tiveram Aznar e Blair, terrorismo em casa.
Perceberam, cavaquistas e portugueses em geral, o que está em jogo na próxima eleição? Querem terrorismo em casa por uma causa idiota que não nos diz respeito?
Cavaco Silva é autor moral da idiotice de Durão Barroso ao apoiar Bush na guerra do Iraque, porque Durão Barroso era o seu delfim. Não venha agora fingir que se distancia da posição de Durão Barroso quanto à guerra do Iraque, porque os portugueses nada viram dele nessa altura e depois.
Os portugueses não gostam de múmias oportunistas e videirinhas. Gostam de Mário Soares, poque ele enfrenta os toiros quando muitos fogem ou ficam calados.
Quem quer paz e não se quer candidatar a levar com uma bomba islãmica na cabeça vota Mário Soares. Quem se quiser arriscar a outro destino, vota num oportunista qualquer que fica calado quando um filho deita gasolina na casa que ameaça arder.
gostei :) como eu costumo dizer "a simpatia nunca foi uma virtude".
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